Flocos únicos
Não existem dois flocos de neve iguais. E os padrões formados pelas ramificações maravilham o nosso olhar. A razão da unicidade destes flocos é a aleatoriedade presente no fluir do ar atmosférico. As pessoas dizem muitas vezes que nada acontece por acaso, ou até que o acaso é o pseudónimo de Deus quando não quer assinar e com isso dar a entender que, na sua perspectiva, talvez não exista acaso. Mas o acaso é a razão para a marca trinitária de que a verdadeira novidade emerge da relacionalidade. O que sentir diante disso?
Gratidão. Quando experimentamos por um comentário ou gesto como somos únicos para alguém, no peito surge um calor que expressa a alegria de nos sentirmos amados. Nem todos os frutos da aleatoriedade presente no mundo produzem padrões de beleza única como os flocos de neve, mas estes mostram como isso é possível e poderiam servir de fonte de inspiração para contemplar o mundo de um modo diferente.
As pequenas diferenças entre partes do nosso corpo causadas por eventos aleatórios no nosso desenvolvimento testemunham com a aleatoriedade é a fonte da unicidade. Porém, este pensamento parece ser contrário àquele em que nós não somos fruto do acaso, mas de um desígnio de amor de Deus. Pois, a ideia de acaso ou aleatoriedade é a de um certo escape à vontade própria, incluindo a Vontade de Deus. Porém, quando olhamos para uma pintura, todo o traço resultou da mão criativa do pintor. Não poderíamos pensar que o acaso faz parte da pintura da criação? Por que razão haveria Deus-Trindade criado um mundo cuja novidade emerge do inesperado?
O acaso parece-me ser uma parte do mundo que revela a Trindade como um Deus de surpresas. Isto é, que surpreende e deixa-se surpreender. Porém, a aleatoriedade que gera flocos únicos só actua nos relacionamentos entre as coisas. É como se o fruto criativo fosse o desfecho de uma dança relacional entre o conhecido e o desconhecido. Quem conhece, realmente, o que é o desígnio de amor de Deus? Ninguém. Só quando no resultado reconhecemos o que é bom, belo e verdadeiro é que identificamos algo que emerge de um processo aleatório como parte do desígnio de amor de Deus, mas eu questiono se temos uma ideia ainda superficial daquilo que é o "desígnio" de Deus.
Quando em família jogamos e o decurso do jogo depende de um dado, penso que a razão da alegria é a expectativa pelo resultado diante do dado lançado. E quando o resultado não é o que esperávamos, levando-nos a perder pontos, quem sabe perder, goza consigo próprio e mantém-se alegre no jogo. Não tememos perder um jogo por sabermos que isso é inconsequente para a nossa vida, mas quando essa está em jogo, o resultado do acaso aliado a uma fatalidade não produz o mesmo efeito, levando-nos a questionar o "desígnio" de Deus. Na prática, tememos que o jogo da vida termine antes de termos gozado em plenitude a alegria de nos mantermos em jogo.
Jesus nasceu apenas uma vez. Morreu apenas uma vez. E uma só vez, ressuscitou. Não sei o que me deslumbra mais. Se a ideia de que o momento e lugar dos eventos foi pensado por um Deus-Amor, ou antes a ideia de que o Amor de Deus favoreceu a pura criatividade através daquilo que acontece aleatoriamente. A consciência que se deixa surpreender com a unicidade a partir da aleatoriedade; seja pela nossa finitude, limites, ou desfechos indesejados; seja pela beleza da rede de relações entre as coisas que gera flocos únicos; é a consciência de que a autêntica liberdade advém da nossa incapacidade de controlar tudo e todos. Por isso, talvez o Pintor Criador deste universo quis impregná-lo de liberdade, sendo a aleatoriedade um sinal disso.
Para os que temem a incerteza como algo fora da Vontade de Deus, creio que associam essa Vontade a uma ânsia humana de querer controlar os destinos de tudo e todos. A intuição de que somos feitos à imagem de Deus, talvez seja a razão desse pensamento porque, se somos assim, talvez seja por Deus ser assim também. De certo modo, há que reconhecer o risco de estarmos a fazer Deus à nossa imagem e semelhança. Por isso, procurar conhecer o mundo e as razões que o dinamizam, ajudam-nos a "des-antropomorfizar" as ideias que temos de Deus e daquilo que Deus quer.
Como os flocos, os momentos passados em família neste tempo natalício são únicos. Poderá ser a última vez que vemos determinadas pessoas, ou a primeira vez porque nascem. Poderá ser a primeira vez ao fim de um longo período que sentimos juntos uma alegria que nos marcará para sempre. Abrem-se oportunidades para conversas únicas e profundas, ou abraços calorosos no tempo certo para alguém que precisava e nós não sabíamos. Nos relacionamentos deixamo-nos transformar pela novidade perene que o outro é para mim e eu sou para ele. Também nós somos flocos únicos, cuja liberdade de amar pode embelezar o mundo.
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