Reflectir muda
Na tradição católica, o período quaresmal significa dar espaço ao tempo de reflectir sobre a nossa união com Deus e como essa se expressa através do nosso estilo de vida. Por vezes penso neste período como um caminho onde cada passo pode converter-se num sinal de reflexão sobre onde estou e para onde quero ir. Um convite a ir para além dos sinais exteriores e a prestar mais atenção aos sinais interiores.
Que valor têm os sinais exteriores de jejum e abstinência? São válidos ainda hoje? Serão somente sinais exteriores? Poderíamos adaptar o simbolismo a coisas mais actuais como o jejum do excesso de informação e a abstinência de comentários negativos nas redes sociais. Mas assumindo que reflectir, muda, será necessário ir mais a fundo e compreender bem o significado desses dois gestos no caminho quaresmal.
Sempre que visitava o meu amigo Celso ficava impressionado com o seu quarto sempre arrumado. Porém, o seu conceito de arrumação era simples: estava quase vazio. Isto é, o pouco que eu sentia que ele tinha, mais tarde compreendia que se reduzia apenas ao que ele considerava necessário e essencial. O meu quarto era o oposto. Papéis por todo o lado, sobretudo em cima da mesa de trabalho, de modo a ter tudo à mão. A versão dele era melhor e mais próxima do significado profundo do jejum e da abstinência.
Na homilia de ontem, Quarta-Feira de cinzas, o sacerdote reflectia sobre como a quaresma não é a aplicação de uma conjunto de técnicas, à espera de produzirem um resultado divino, como se Deus fosse uma máquina onde colocamos a moeda e esperamos receber justiça. A quaresma assemelha-se mais a uma experiência de vida da graça. Depois, ele focou-se no jejum e sugeriu que o seu sentido mais profundo é o da experiência da ausência. O vazio. E se reflectir, muda, o meu pensar voltou-se para o vazio dentro de mim. Como o coração representa todo o nosso ser, jejuar é verificar o grau de desarrumação do meu coração.
Os nossos corações podem viver atafulhados de coisas. Normalmente, essas coisas são as preocupações, frustrações, irritações, desilusões, etc. O modo que encontrava de aplicar a técnica do meu amigo Celso era a de esvaziar primeiro o quarto, sobretudo deitando fora tudo aquilo que não tem mais valor, partilhar aquilo que está a mais, e só depois de vazio é que voltava a encher, mas restrito ao essencial e que tinha realmente valor após reflectir bem. Não poderia o jejum ser a aspiração a viver assim, no essencial?
Ernest Hemingway disse que — «Coragem é graça sob pressão.» — e quando temos de reflectir para mudar e reduzir ao essencial o que queremos guardar no coração, é preciso coragem. Coragem, por exemplo, de dizer não. No livro que dedica ao "Essencialismo", Greg McKeown diz que — «O 'não' certo e dito no momento apropriado pode mudar o curso da história.» — Mas esse não é diferente de negacionismo. Na linha do jejum como ausência que cultiva o essencialismo, um nãoimplica clareza. Essa fortalece-nos o coração para recusarmos o que não é essencial. Porém, quando o não é dado a outra pessoa que nos pede alguma coisa, importa clarificar que a recusa do pedido não equivale à recusa da pessoa.
Se o jejum pode servir para arrumar o coração, que sentido mais profundo pode ter a abstinência? Na mente de muitos portugueses estará, certamente, o relatório dos abusos sexuais, onde membros do clero não viveram a radicalidade dessa experiência. Isso invalida-a? Talvez haja quem pense que sim, mas não sei se têm razões profundas para isso. Os abusadores falharam na abstinência, talvez porque na sua formação, e no tempo em que essa ocorreu, vivia-se um período antes da Teologia do Corpo de S. João Paulo II, e depois, vive ainda um período de recusa da clareza que essa oferece.
A abstinência é um gesto que pertence à castidade. Na Teologia do Corpo, a castidade entende-se como autenticidade sexual. Assim, a abstinência no seu sentido mais generalizado, diria, corresponde ao gesto da autenticidade na renúncia para vivermos no essencial. No sentido profundo de abstinência está, como diz S. João Paulo II, uma — «renúncia que é ao mesmo tempo uma forma particular de afirmação do valor» — e um coração arrumado está ciente daquilo a que dá valor. Se reflectir, muda, esse é um dos valores que certamente ajudará a caminhar, passo a passo, na conversão do nosso coração para que se una, cada vez mais e melhor, a Deus, o Essencial por excelência.
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