As feridas que todos temos
É muito difícil falarmos das nossas feridas. É complicado assumir que as temos. Que as vemos. Que podemos, até, viver à sombra destas durante toda a vida sem nunca nos apercebermos.
Qual será, então, o perigo de não olharmos para as feridas que temos? Não podemos, simplesmente, escolher não ver?
O perigo é o de vivermos amargados pelas consequências apodrecidas desses golpes, dessas feridas. O problema de escolher não ver é, apenas, escolher ser cego.
Quando não dedicamos tempo às nossas feridas, arriscamo-nos a que nos assaltem nos sonhos, enquanto dormimos ou enquanto vamos andando em piloto automático pelos dias que nos vão sendo dados.
Quando não retiramos momentos para ver o que as (nossas) feridas nos fizeram (e nos fazem, ainda) não somos capazes de nos contemplar por inteiro. Vemos uma parte. Como se escolhêssemos acreditar que a lua só existe em versão quarto minguante e que todos os seus outros lados são meras ilusões.
As feridas ensinam-nos. Mostram-nos coisas bonitas sobre nós. E, principalmente, mostram-nos coisas feias. Coisas que não gostávamos de ser. De sentir. De atirar aos outros. Mas somos. E sentimos. E atiramos e respondemos como se os outros tivessem culpa do novelo preto que enrolamos para dentro de nós e que nos contorna a alma e o peito de uma maneira tosca e pouco ordenada.
Neste tempo “ferido” que vivemos; nesta época de tantas feridas que vemos abertas e que não dependem de nós para sarar, que nos ocupemos de sarar as nossas. Ou, na impossibilidade de o fazer, que possamos (pelo menos!) ter a coragem de as olhar de frente.
Neste tempo de deserto em que queremos caminhar para ser melhores do que aquilo (e aqueles) que vimos e ouvimos todos os dias, que saibamos romper com a falsa luz e que tenhamos fôlego para mergulhar na escuridão que também somos.
Só a partir da coragem de ver, se pode encontrar a coragem para sair dali.
Na dúvida, escolhe ver. Aceita a vergonha. O horror. O tanto que gostavas que não te doesse. Mas não finjas que não vês. E que não és.