Brevemente - Alienação
Se a pandemia foi um momento difícil para todos nós, a guerra na Ucrânia não é menos difícil apesar da distância que nos impede de ouvir o estrondo das bombas. Recentemente, num livro com escritos essenciais do P. Thomas Berry (1914-2009), sacerdote Passionista, li que após as duas Guerras Mundiais houve um colapso do significado que levou a um profundo sentido de alienação entre as pessoas e alienação em relação ao mundo à sua volta. Berry respondeu a essa alienação com empatia, pelo que fiquei a pensar se não teremos uma situação de alienação espiritual para breve que exija uma capacidade acrescida de empatia.
No modo de falar, estar e sentir de muitos cristãos (e não-cristãos) está ainda a marca do relatório sobre os abuxos sexuais por parte do clero no âmbito eclesial português. Pessoalmente, considero que um sacerdote que abusou de um menor foi incapaz de ver nesse menor Jesus. Por isso, um abuso sexual contra um menor é um abuso sexual ao próprio Jesus. É sacrilégio. É duro ver as coisas deste modo, mas se assim não fosse, então, o Evangelho em que Jesus diz que tudo o que fizerdes ao mais pequeno é a Ele que o fazemos (Mt 28, 40), seria uma mentira. O assunto não é só grave do ponto de vista humano, como também do ponto de vista espiritual. Nesse sentido, este relatório revela ser possível alguém que consagra uma hóstia, viver uma profunda dissonância entre a vontade de Deus e a realidade que sintetiza matéria com o espírito. Ou seja, revela uma alienação espiritual que poderá levar ao colapso de significado da mensagem cristã. Estaremos cientes disso?
Não sei se um padre que veja comprovado o abuso que cometeu deva ser suspenso, ex-comungado ou orientado para uma vida monástica onde pudesse reencontrar a vocação primordial ao serviço e dom-total-de-si-mesmo. Nem sei quais as implicações que esse acto provado possa ter no significado de todas as vezes que uma hóstia foi consagrada nas suas mãos. Contudo, parece-me evidente que as consequências de uma alienação espiritual como esta, podem ser de tal forma profundas, que só um voltar-se inteiramente para Deus e para a Sua misericórdia em tempo quaresmal, pode ajudar-nos a escutar cada vez mais e melhor o que Deus nos quer dizer com tudo isto.
O antídoto para a alienação causada pelas guerras, propõe Thomas Berry, é uma maior compreensão do laço relacional entre o universo e a Terra. Será que, por analogia, um antídoto para a alienação espiritual, que poderemos em breve sentir mais intensamente, ser uma maior compreensão do laço relacional entre o Céu e a Terra? O que une o Céu e a Terra de forma mais evidente senão a própria Eucaristia?
Esta dura realidade dos abusos (sexuais e de poder) para qualquer cristão é um sinal claro da importância e validade do caminho sinodal e desse modo de sermos Igreja. Além de um caminho de participação, missão e comunhão, pode ser um processo de cura, renovação e restauração da nossa união com Deus através dos relacionamentos comunitários mais vivos, sinceros e profundos. Esta dura realidade torna-nos mais humildes e cientes das nossas limitações.
A alienação espiritual pode ser um “filme” que estará brevemente nos cinemas da vida. E a questão feita a cada um de nós será: manténs-te sentado a ver o filme passar diante dos teus olhos enquanto comes pipocas? Ou levantas-te da cadeira para te imergires na realidade, procurando ser testemunho vivo daquilo em que acreditas, tratando de feridas profundas com todo e qualquer acto de amor por mais que te custe?
Ultimamente, tenho visto os padres mais cabisbaixos. Como se fosse um reflexo da nossa tristeza colectiva. Somos irmãos pelo baptismo e vivemos, também este sofrimento, juntos. Compreendo em absoluto todo o movimento feito pelo apoio às pessoas que sofreram os abusos, mas sinto que corremos sempre o risco de tomar a parte pelo todo, quando muitos mais são aqueles que dão a sua vida por amor a Deus e ao serviço do Evangelho. Um sacerdote não abdicou de uma vida leiga para se dedicar a Deus, mas ofereceu a sua vida para se dedicar ao próximo, em quem vê Deus.
Se um quadro branco tiver um ponto negro, todos notam no ponto e o branco é como se não existisse. Se a alienação espiritual se supera com a Eucaristia, serão os sacerdotes que nos proporcionam esta oportunidade de ligar o Céu e a Terra para curar as feridas mais profundas. Parece-me que o primeiro abuso sexual que um abusador realiza é o que ocorre no seu coração ao afastar-se de Deus dentro de si, ao deixar de ver Deus nos outros, e esquecer-se de rezar sem cessar — «Senhor, Jesus Cristo, tem piedade de mim.» — uma oração que purifica o coração. Nesse sentido, qualquer um de nós pode tornar-se num abusador. Sinto a necessidade de estarmos mais atentos porque, brevemente, poderemos viver uma alienação espiritual que poderá ser mais difícil de superar do que qualquer alienação gerada por uma guerra.
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