Consciência reflexiva

Crónicas 6 abril 2023  •  Tempo de Leitura: 6

Os cristãos acreditam num Deus que se fez homem e lavou os pés de outros homens, antes de começar um caminho de tormenta sem sentido e significado para a pessoa comum. Faz sentido? O serviço aos mais pequenos é o sentido que o cristão encontra naquele gesto porque, se Jesus, que acredita ser Deus, o fez, também nós somos chamados a fazê-lo. Porém, não deixo de pensar como tudo isso depende de Jesus ser Deus, e de como o cristão acredita nisso como verdade, embora o não-crente tenha muita dificuldade em chegar a esse ponto. Por isso, com legitimidade, o não-crente pergunta ao cristão — «como sabes que Jesus é Deus? E que Deus, existindo, dá-Se a conhecer?» — Entra aqui a consciência reflexiva.


Nenhum ser humano é capaz de negar ter consciência. Pode não compreender bem a ligação entre a biologia que suporta o pensamento consciente, mas sabe que as duas coisas estão relacionadas. As experiências de quase-morte, como as reportadas no projecto AWARE, mostram o conhecimento de detalhes, quando não havia acesso óptico à informação que as pessoas descreveram depois dos seus corpos serem reanimados. Porém, aparentemente, a consciência humana foi capaz de fazer uma interpretação da realidade quando não havia condições físicas para isso. Como cientista e crente, estes episódios são intrigantes e despertam a curiosidade.



Na quinta-feira santa, além do serviço, os cristãos reflectem sobre o valor transformativo que tem a Eucaristia para eles. Poderá Jesus realizar algo como a transubstanciação de um pedaço de pão que apenas a nossa consciência reflexiva pode interpretar? E como validar essa interpretação? A ideia de explorar verdades subjacentes a realidades de forma objectiva é uma visão muito limitada do método científico. Qualquer cientista que descreve uma realidade sob intenção de chegar à verdade é um sujeito que tem uma ideia e testa-a. Por isso, como argumenta o químico e filósofo da ciência Michael Polanyi, o conhecimento é pessoal. Como cientista, o modo como penso pode ser diferente do modo como o outro cientista pensa, podendo haver dois caminhos para chegar ao mesmo resultado, como acontece em muitos dos exercícios que trabalho com os meus alunos de transmissão de calor. Também nas coisas que envolvem Deus, sobretudo quando Ele é o Mistério por excelência, não seria de esperar outra coisa senão a diversidade de caminhos para nos aproximarmos d'Ele. Contudo, todos esses caminhos envolvem a consciência reflexiva.



A consciência reflexiva tem muito a ver com a metacognição que se refere à nossa capacidade de pensar sobre os nossos próprios pensamentos, emoções e percepções. É uma experiência de profundidade que suscita sempre dúvidas quando é feita isolada dos outros. A filosofia e a teologia baseiam todo o seu estudo nesta consciência reflexiva, sem qualquer pretensão de absolutizar as interpretações a que chegam, mas dispostas sempre a oferecê-las para estimular o diálogo sobre essas.


Podemos sempre comparar o resultado da consciência reflexiva com a realidade objectiva. Quando Jesus lava os pés dos apóstolos e convida-os a fazer o mesmo (e com eles, todos os cristãos), seguramente que a realidade objectiva não está restrita a lavarmos os pés às pessoas. A consciência reflexiva aponta para um sinal. O sinal de que há mais alegria em dar e amar, servindo, do que em ser servido e exigir tudo e mais alguma coisa de tudo e todos. Com aquele gesto, simples e concreto, a consciência reflexiva sugere o convite que Deus nos faz por meio do exemplo de Jesus, a vivermos mais voltados para fora de nós, de que esperar que tudo viva ao nosso redor e em função de nós.



Este aspecto pode ser pouco relacionável com qualquer percepção da existência de Deus, mas não vos parece estranho que, se Jesus fosse mesmo Deus, lavasse os pés a alguém se a natureza da Sua existência fosse algo para além de amor? A descoberta de Deus-Amor não é uma viagem feita de anuires com a cabeça a todo aquele que se diz uma autoridade espiritual ou religiosa, mas com a dúvida saudável de quem reconhece que a sua consciência reflexiva, sozinha, pouco avança.



A verdade a partir da consciência reflexiva revela-se, sobretudo, a partir de múltiplas perspecivas, percepções, crenças e experiências, quando juntos procuramos um caminho onde o consenso não anula a nossa diversidade, mas transforma-a em riqueza profunda. Quando partilhamos entre nós a interpretação que a consciência humana faz das coisas profundas, produzimos nova informação a partir dos relacionamentos. Podemos ter dificuldade em aceitar a informação proveniente da subjectividade de cada um, mas será mais evidente aceitar a que provém da inter-subjectividade de dois ou mais. 

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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