Vital desobediência
Se uma lei for prejudicial, ineficaz ou obsoleta, justifica-se a sua revogação ou abolição. Metaforicamente, isso corresponderia a "eutanasiar" uma lei. Mas devido à divergência de opinião, ausência de referendo e imposição estatal daquilo que um grupo de pessoas pensa ser o melhor para os governados, resta-nos apenas uma possibilidade: a "desobediência civil" à moda de Thoreau.
Thoreau diz que — «o ideal não é que se cultive o respeito pela lei, mas pela justiça. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer sempre o que penso ser justo.» — uma ideia problemática porque a garantia daquilo que um pensa ser justo pode ser diferente daquilo que outro (como o Estado) pensa ser justo. E dado que este último possui (suposta) competência legislativa, a sua autoridade (como capacidade de fazer crescer) deveria prevalecer. Mas Thoreau continua dizendo que — «Nunca a lei tornou os homens mais justos; e é até por causa do respeito pela lei que alguns bem-intencionados se tornam, todos os dias, agentes da injustiça.»— A lei não pode sobrepor-se à consciência das pessoas que podem sempre questionar se a lei serve ou não a vida. Não está a vida humana acima da lei?
O problema que origina leis como a da eutanásia está no sofrimento que algumas pessoas podem experimentar, retirando-lhes o sentido de viver, querendo, assim, salvaguardar o seu "direito a morrer". Por que razão haveria de ser injusto alguém querer morrer?
«Uma pessoa não tem obrigação de fazer tudo, mas sim alguma coisa.» (H.D. Thoreau)
Prolongar a vida de uma pessoa em sofrimento faz apenas sentido se existir um propósito para o seu sofrimento. Encontrar um propósito é um percurso pessoal e extremamente difícil para alguém doente. Por isso, o maior drama de alguém que vive sofrimentos atrozes é o de vivê-los sozinho. E mesmo que seja acompanhado pelos seus familiares, médicos e enfermeiros em cuidados paliativos, compreende-se que sinta como ninguém consegue realmente colocar-se na sua pele, logo, o caminho da solidão pode tornar-se inevitável, assim como o desfecho do desejo de morrer. E aqui está a injustiça. É injusto que alguém sinta a morte como a única solução para terminar com o seu sofrimento. E esta lei da eutanásia facilitará o mecanismo de banalização da morte que inevitavelmente leva à banalização da vida.
«Não se olhe à pequenez do primeiro passo: o que se faz bem uma vez é para sempre.» (H.D. Thoreau)
A desobediência civil relativamente à lei da eutanásia expressa a confiança profunda de que existe um sentido para o sofrimento, suficientemente amplo e concreto, que não dependa de qualquer convicção religiosa ou filosófica. Recentemente deparei-me com uma ideia a explorar relacionada com o pensamento do Nobel da Física Ilya Prigogine — a qualidade da fragilidade é a capacidade de ser “abanado” e, paradoxalmente, revela ser a chave do crescimento. Segundo a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine, a evolução é impossível sem a fragilidade. Uma pessoa em sofrimento continua, como todos os outros, a consumir energia do ambiente porque a sua experiência aumenta a complexidade da vida, revelando ser uma estrutura dissipativa, motor evolutivo do mundo. O sofrimento é um enorme desafio para quem o vive, mas desafia também todas as vidas que entram em contacto com a pessoa que sofre, abrindo uma via cooperativa que pode realizar uma reestruturação transformativa da totalidade da experiência humana. A eutanásia quebra o impulso evolutivo da fragilidade em torno do esforço para cooperar de modo a enfrentarmos juntos o desafio do sofrimento de alguém. Parece-me que a razão para a vital desobediência relativa a esta lei que merece ser eutanasiada seja: o sofrimento como elemento chave da evolução humana. E quando tomarmos melhor consciência disso, teremos dado o primeiro pequeno passo.
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