Descobrir ocasiológios
Quando queres ver as horas precisas de um relógio. A experiência de tempo subjacente é a do tempo cronológico, mas existe uma outra faceta da experiência de tempo diferente daquela marcada por horas, minutos e segundo. É a experiência do tempo certo, do tempo oportuno, do tempo presente, do tempo kairológico. O que poderia marcar o tempo kairológico como o relógio marca o tempo cronológico? Sugiro que seja um ocasiológio.
O relógio é uma palavra que vem do latim horologium que significa o conhecimento (logium) da hora (horo). Se o tempo kairológico é o tempo oportuno, a palavra em latim para a oportunidade seria occasio (e daí a ocasião como algo oportuno). Por isso, ocorreu-me que um ocasiológio pudesse ser o que marca o que quer que seja que acontece no tempo oportuno, no tempo kairológico. O que acontence, então, no tempo kairológico? Mudanças.
No tempo cronológico, o tempo é a medida da mudança. Isto é, algo que muda faz-nos experimentar o passar dos segundos, minutos e horas. Mas no tempo oportuno, a definição anterior (tempo como medida da mudança) inverte-se. Ou seja, a mudança é a medida do tempo. Se nada muda, parece que o tempo pára. Não evoluímos e cristalizamos a vivência quotidiana. Nesse sentido, quanto mais mudarmos, mais tempo (não o tipo cronológico) "medimos" e isso significa que mais tempo (kairológico) geramos. Dito de outra forma, mais oportunidades de experimentar o tempo certo entram no horizonte da nossa vida. Como regista o ocasiológio essas mudanças?
No "Tempo 3.0", livro que dediquei ao desenvolvimento de uma visão (r)evolucionária da experiência mais transformativa do mundo (o tempo), defino ocasiológios como — «coisas físicas que expressam na experiência de tempo o registo dos momentos oportunos que geraram em nós alguma mudança, materializando a vivência do Kairos. Pode ser uma pintura, uma foto revelada, um diário, um certificado, um troféu, um livro, uma memória escrita. Coisas que não sejam digitais ou digitalizáveis para servirem, como diria Roland Barthes relativamente às fotografias, de certificado de presença.» — As fotografias que antes nos ofereciam memórias das mudanças que ocorreram na nossa vida, estão, gradualmente, a deixar de serem "coisas" com suporte físico que abrem uma janela inigualável para o passado. Basta pensar naquilo que sentimos ao abrir um album de fotografias. Hoje, as fotos tornam-se, cada vez mais, em "não-coisas". Até o relógio que antes tinha ponteiros se tornou numa "não-coisa" digital, sem forma. Pelo contrário, os ocasiológios serão sempre "coisas" tocáveis que nos podem fazer reviver momentos de transformação pessoal importantes.
Alguns poderão ver na necessidade de suporte físico de um ocasiológio uma limitação. Pois, «uma pintura, uma foto revelada, um diário, um certificado, um troféu, um livro, uma memória escrita» podem degradar-se no tempo, enquanto que o suporte digital tenderá a perdurar por deixar de ter um formato especifico de existência. Mas o risco que a transformação das "coisas" em "não-coisas" é o da banalização daquilo que representava uma transformação para nós. Por outro lado, e se um dia uma tempestade solar sem precedentes na história danificar todos os dispositivos electrónicos, fazendo-nos perder todas as "não-coisas" de um momento para o outro? Tudo passa.
Descobrir ocasiológios é uma forma de estarmos mais atentos às transformações que se dão na nossa vida e reencontrar o valor das "coisas".
O relógio fragmenta a história em pedaços de tempo e essa é uma das razões de sentirmos a necessidade de o gerir
O ocasiológio revela-nos que existem "coisas" que nos fazem sempre sentir como a experiência do tempo é a mais transformativa do mundo.
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