Ousar relacionar-se

Crónicas 9 novembro 2023  •  Tempo de Leitura: 5

Os abusos provenientes do clericalismo vividos pelos sacerdotes ou até leigos, não se restringem ao de natureza sexual, mas uma boa parte são abusos de poder (menos falados, mas reais e sérios). Isto é, alguém que nos induz a fazer algo porque tem a certeza que isso agrada a Deus pode tornar-se num abuso. Usam a relação com Deus dos outros para que esses se sujeitem à vontade do abusador. Ninguém deveria “usar” neste sentido a relação com Deus seja para o que for. E se acrescentássemos a letra “o” à esquerda da palavra usar? Ficaria ousar.

De usar a relação com Deus para ousar relacionar-se com Deus é um passo que converte a perspectiva dessa relação como objecto que consideramos estar sob o nosso controle, para passar a ser uma acção que parte da própria pessoa na direcção de Alguém que está para além de si mesma. Ousar relacionar-se com Deus, nem sequer é um acto restrito a quem acredita. Pois, o que impede o agnóstico ou o ateu de ousar estabelecer criativamente esse relacionamento senão pelo preconceito de que Deus não existe? 

Questionar a existência de Deus pode não passar de uma bela ideia inglória porque encontrar uma resposta no plano existencial d’Aquele que, por definição (caso contrário não seria Deus mas outra coisa qualquer), é o fundamento da existência, seria como dizer que — “a existência existe”. Pois. Estranho. Não tem muito sentido. Por isso, ainda que a sensibilidade de uma pessoa para quaisquer realidades fora do âmbito material seja realmente diminuta, nada há no cosmos que a impeça de ousar relacionar-se com Deus, desde que ouse, também, sair do mundo das ideias pré-concebidas sobre a Realidade para encontrar Deus até (indirectamente) no mundo físico, tendo em conta que a Deus, nunca ninguém O viu ou verá. 

Quando penso no plano material da existência, devo reconhecer que esta ousadia de nos relacionarmos com Deus não é trivial porque tudo à nossa volta não mostra que Deus faça seja o que for, mas que Ele criou as coisas para que essas se fizessem a si mesmas. Que trama… Quando um não-crente ousar relacionar-se com Deus, terá de experimentar sair de si mesmo e deixar para trás até o que pensa, de modo a não se deixar limitar pelos preconceitos (e o mesmo poderia aplicar-se aos que se dizem crentes). É difícil, mas parece-me ser a única forma de mergulhar na Existência. Porém, abdicar de pensar significa criar dentro de si um espaço vazio de preconceitos para acolher tudo e todos que dinamizam o espaço fora de si. É semelhante a fazer uma espécie de vazio interior para que todo o nosso ser fique aberto à surpresa que a incerteza presente no mundo nos reserva. Ficar aberto é estar atento. Por exemplo, e se ousar relacionar-se com Deus passasse pelo aperto de mão a um pobre? 

As pessoas têm alguma repugnância em cumprimentar um pobre e não percebo por que razão. Acham que tem as mãos sujas? E nós? Temos as mãos assim tão limpas? Estou cada vez mais convicto de que temos as mãos tão sujas quanto as de qualquer pobre. Será o amor no encontro de ambas as mãos sujas que, pouco a pouco, se limpam os nossos corações.

Quando formos capazes de vencer o estigma da nossa falsa perfeição, o próximo passo seria o de experimentarmos apertar a mão do pobre como a apertaríamos caso estivessemos a apertar a mão de Deus. Sorrir para o pobre como se estivessemos diante da face de Deus. Oferecer uma palavra ao pobre como se nos dirigíssemos a Deus. Parece ser algo ridículo, mas quem experimenta, ousa relacionar-se com Deus, mesmo não acreditando n’Ele. O tempo e a prática revelarão a Verdade, qualquer que essa seja.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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