Dois dedos
Dois dedos de testa. Dois dedos de conversa. De onde vem esta ideia dos “dois dedos”? Esta indagação, aparentemente simples, carrega consigo um peso de tradição e sabedoria popular que transcende gerações.
No meio das vielas e conversas ao redor da fonte central de uma pequena vila, um grupo de amigos de longa data confraternizam e relembram com nostalgia duas expressões — "dois dedos de conversa" e "dois dedos de testa" — que faziam parte do seu vocabulário diário. Eles reconheciam como essas frases, aparentemente triviais, reflectiam uma sabedoria colectiva e uma percepção cultural que mereciam ser mais exploradas e compreendidas.
Historicamente, as nossas comunidades sempre valorizaram o equilíbrio e a moderação em todas as suas formas - desde a arquitectura às relações interpessoais. "Dois dedos", como medida, podia simbolizar esse equilíbrio. Não é demais, nem de menos, mas o suficiente. É uma unidade de medida prática, fácil de visualizar e compreender. Os dedos são instrumentos universais para ilustrar quantidades pequenas e dois dedos são facilmente demonstráveis com as mãos.
"Dois dedos de testa" é uma expressão que pretendia denotar inteligência ou discernimento quando os usamos. Os "dois dedos" que se referem à altura da testa, expressam como as pessoas pensavam que uma testa mais alta poderia indicar maior inteligência ou capacidade mental. Assim, dizer que alguém tem "dois dedos de testa" era uma maneira de dizer que a pessoa possui um mínimo de inteligência ou bom senso.
"Dois dedos de conversa" é uma expressão mais usada para descrever uma conversa breve e informal. "Dois dedos" neste contexto são uma unidade de medida para indicar algo curto ou pequeno. Portanto, "dois dedos de conversa" sugere uma troca de palavras rápida, sem entrar em detalhes ou prolongamentos.
Quando penso naquilo que se está a passar no COP28 nos Emirados Árabes Unidos, não posso deixar de pensar em “dois dedos de testa” e “dois dedos de conversa”. O The Guardian reportou as afirmações do presidente da COP28, o Sultão Al Jaber, que teria afirmado “não haver ciência” que indique ser necessário eliminar gradualmente os combustíveis fósseis para restringir o aquecimento global a 1.5ºC (quase 2ºC como “dois dedos”). Não é preciso ter “dois dedos de testa” para nos apercebermos da “incompreensibilidade” desta ideia vinda do presidente da própria COP28. Al-Jaber esclareceu as suas declarações explicando que os comentários que fez foram mal interpretados e tirados de contexto, reforçando a ideia da eliminação gradual dos combustíveis fósseis como inevitável e essencial. O que Al-Jaber continuou a afirmar, para dar algum sentido ao que disse, foi a ideia de não haver cenários científicos que sugiram que apenas a eliminação dos combustíveis fósseis alcançará o objetivo de limitar o aquecimento global a 1.5°C. Este é um exemplo perfeito do mercado da dúvida como exploraram Naomi Oreskes e Erik Conway em "Merchants of Doubt", onde a dúvida suscitada pela palavra "apenas" é o suficiente para diminuir o impulso na direcção de uma acção climática focada e incisiva como é necessário. A pergunta que o Papa Francisco fez há oito anos na Laudato Si' (57), e repetiu na Laudate Deum (60), continua a ecoar diante do cenário deste COP28 — «Aos poderosos, atrevo-me a repetir esta pergunta: "Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?"»
Cada vez mais, ano após ano, os COP têm-se tornado em momentos de “dois dedos de conversa” inconsequentes. Avalio assim o desempenho desta conferência porque todos os anos os argumentos são os mesmos. Se o rumo entre duas conferências consecutivas fosse diferente, os argumentos seriam outros.
No entanto, pensando agora na quantidade de “dedos”, alguns poderiam questionar qual a razão da escolha do número dois. Será por ser mais uma convenção do que uma regra estrita? Por que não “um dedo” ou “três dedos”? A escolha de "dois dedos” é acidental ou intencional?
Não há resposta certa para estas perguntas. A expressão "dois dedos", enraizada na cultura de língua portuguesa, é mais do que uma mera medida porque "dois" é o mínimo que permite estabelecer nas nossas mentes a ideia de relação. "Dois" pode simbolizar um princípio de vida como: a busca pelo equilíbrio. Seja na arte, ciência, economia, na simples condução de uma conversa, ou na avaliação da inteligência, "dois dedos" serve como um lembrete da importância de encontrarmos o meio-termo em todas as fases e facetas da nossa vida. Por vezes, a sabedoria está em reconhecer que o suficiente pode ser apenas "dois dedos". Nem mais, nem menos.
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