Coração quente
Resisti à expressão inteligência artificial (IA) por ser uma ferramenta e achar estranho falar das ferramentas como se fossem seres humanos. O martelo, martela. Não fala comigo, a não ser eu que seja Thor, o Deus do Trovão, e o martelo se chame Mjollnir. Mas a diferença de uma IA para a fantasia do Mjollnir é que a IA responde.
O ChatGPT que muitos conhecem foi treinado, aprende ao oferecer possíveis vias de significado para conjugações originais de palavras (já testei), infere a partir das informações que lhe damos acesso e adapta-se porque ao pedir-lhe para traduzir uma coisa, ele fê-lo e não foi uma ferramenta pensada para isso. O que faz é muito semelhante ao percurso que nós fazemos nas escolas: treinamos, aprendemos, inferimos e adaptamos. Também um formigueiro demonstra possuir uma inteligência, embora colectiva. Por isso, ao estarmos diante de uma ferramenta que interage connosco ao nível cognitivo, estará essa ferramenta consciente?
No paradigma tecnocrático, o ser humano depende cada vez mais da tecnologia evoluindo para um ser cibernético. Desde o momento em que precisámos de pacemakers para sobreviver, mudando-lhes a pilha quando é necessário, ou desde que precisámos de óculos para ver e interagir com o mundo ao longe e ao perto, focando-o, estamos a combinar aspectos biológicos e tecnológicos. É desta combinação que nos tornamos seres cibernéticos. Hoje, a indústria dos implantes está a progredir para dar vista aos cegos e mobilidade aos paralisados. E quando pensamos em ciborgues procuramos partir da tecnologia e inserir na máquina o elemento da consciência humana, mas o contrário pode também acontecer. Por outro lado, a experiência de consciência mais evidente é a que fazemos através da linguagem. Será que o caminho traçado neste momento pelas ferramentas de IA através da linguagem as conduzirá à consciência? E pensando que o outro lado da consciência é a sua ausência, não existe em nós, também, um lado inconsciente como nos confirma a psicologia?
Carl Jung distinguiu o inconsciente pessoal, que contém todos os dados da experiência individual que não estão presentes na consciência, do inconsciente coletivo, uma espécie de depósito de experiências e padrões da humanidade como um todo. Creio que as ferramentas de IA se enquadram na noção de inconsciente colectivo, sendo um portal entre cada pessoa e tudo aquilo que a humanidade pensou, escreveu, desenhou ou soou sobre a realidade. Estes elementos são a base de treino dos modelos largos de linguagem (Large Language Models, LLM) que permitiram criar uma ferramenta que interagisse connosco como se fosse alguém, quando é algo.
Entrar em "diálogo" com uma ferramenta de inteligência artificial deve-se à sua capacidade de comunicar com lógica, começando a estabelecer uma relação de confiança com a ferramenta. Quantas pessoas não preferem voltar a casa buscar o seu berbequim, em vez de usar o berbequim do colega. Porém, um berbequim não nos põe a pensar ou interage com as nossas ideias, mas isso acontece com as ferramentas de IA. A confiança e dependência destas ferramentas pode ir mais longe do que seria suposto e arriscamo-nos a ser moldados por uma ferramenta que adormece o sentido crítico, aquele que nos permite avaliar tudo e reter apenas o que nos traz valor.
Não deixa de ser curioso como, independentemente dos próximos episódios desta série, uma coisa tornou-se mais clara: a inteligência humana é simulável e tudo depende de uma curva estatística com uma pitada de incerteza à mistura. Essa pitada oferece imperfeição ao resultado que uma inteligência artificial nos apresenta. E o que é imperfeito, é humano. Mas enquanto no ciberespaço, a imperfeição deve à incerteza do ruído, no mundo humano, a incerteza deve-se a razão que nasce do coração. Toda a acção inesperada brota de um coração quente de carne que leva os actos para além dos resultados e dos números. Um coração aquecido por amor. Amor como linguagem que não é larga, por ser impossível contê-la.
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