Jejum de Ausência
«Filho, come os brócolos que te fazem bem.» — «Não quero.» — diz o filho, mas o pai responde-lhe do mesmo modo — «E eu não quero que tu não queiras.» — baralhando o miúdo com uma dupla-negação que se torna numa afirmação. O jejum da ausência é um convite que faço à vivência da dupla-negação em abdicar de dar pouca importância a coisa valiosas que estão habitualmente ausentes do quotidiano. Por exemplo, pensar em Deus-Trindade.
Pensa do dia de ontem. Talvez tenhas pensado em Deus-Trindade porque participaste na missa de Quarta-feira de Cinzas, mas poderias dizer o mesmo em relação ao dia de carnaval? Ou se reflectires sobre um dia que consideras normal e igual a muitos, qual o espaço interior que habitualmente dás a pensar explicitamente em Deus-Trindade? Realisticamente, Aquele que está sempre presente é um Alguém sistematicamente ausente da mente de muitos de nós. Fazer jejum desta ausência durante a Quaresma seria encontrar modos concretos que experimentar mais a Sua presença.
A vida plena não é uma soma de tarefas cumpridas, mas por vezes é assim que vivemos dia após dia. Algo podia mudar. O interior podia converter-se a uma vida mais profunda e com sentido. Uma vida em que a existência não se encaixa como mais uma tarefa a cumprir, mas são as tarefas a cumprir que se encaixam na nossa existência sem comprometer a consciência da profundidade interior que nos move a fazer seja o que for. Uma sugestão para nos orientarmos nesta direcção poderia ser a meditação pela leitura.
Pela manhã, umas vezes antes, outras vezes depois do pequeno-almoço e higiene, em vez de dedicar tempo a interagir com o ambiente digital onde muitas pessoas vive sistematicamente, tomo nas mãos um livro de teor espiritual e medito, lendo silenciosamente. Jejuar a ausência de Deus-Trindade implica que na meditação, as palavras despertem a mente para a sensibilidade da Sua presença. E isso pode-se experimentar ao longo do dia.
Quando nos encontramos no supermercado para fazer compras, ou numa paragem à espera do autocarro, ou no meio do trânsito, ou melhor ainda, em casa, cruzamo-nos com pessoas. Quem são essas pessoas para nós? Familiares, amigos, desconhecidos, mas se acreditamos mesmo na presença de Deus-Trindade através dos relacionamentos que estabelecemos com cada pessoa, independentemente do tipo de conhecimento, Ele está sempre presente em nós e entre nós. Jejuar a ausência de Deus-Trindade significa reconhecer a Sua presença em cada um e nos relacionamentos de amor fraterno que podemos estabelecer com todos.
Quando nos distraímos, ou se a nossa atenção exige não pensar noutra coisa senão naquilo que temos para fazer, a ausência de Deus parece tão imperceptível que se torna no modo natural de ser e estar. E à questão — ”Onde está Deus?” — respondemos — «Não me ocorreu sequer pensar na Sua presença.» — Sentir a ausência de Deus ao longo do dia parece ser a experiência mais normal e recorrente. Talvez por isso alguns comecei a questionar a Sua existência por viverem tanto a Sua ausência. Poderá a vivência quaresmal alterar alguma coisa?
Jejuar da ausência é como entrar num jogo infinito pela busca dos sinais da Sua presença. Num jogo infinito não importa chegar ao fim, mas mantermos-nos em jogo. Jejuar da ausência para dar lugar à percepção perene da presença de Deus-Trindade é uma fonte transformativa que não cessa de nos renovar interiormente, bastando encontrar modos criativos de nos abstermos da percepção de Deus ausente.
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