O que estamos a fazer às crianças?

Crónicas 16 outubro 2024  •  Tempo de Leitura: 2

Sem tempo para brincar na rua, descalças ou com sapatos,

Sem tempo para encontrar o seu lugar de crianças,

 

Sem tempo para descansar o suficiente ou simplesmente reféns do lado sombra da tecnologia, temos vindo a assistir a uma mudança enorme tanto no comportamento como na dinâmica das crianças e entre as crianças.

 

Muitas das crianças que conhecemos são o reflexo de um grupo de pais desconectados, apressados e a quem lhes é pedido para corresponder ao “nível” de uma sociedade cuja fasquia não faz outra coisa senão subir.

 

Dentro daquilo que nos é possível fazer com adultos quase me parece que temos feito muito pouco. Vemos crianças com pouca resistência à frustração, dedicadas ao scrolling em vez de se dedicarem a um puzzle e rendidas aos tik toks de maquilhagem em vez de lerem um livro que as faça sonhar.

 

Se analisarmos atentamente, quase parece que as crianças brincam aos adultos e querem fazer tudo o que eles fazem e que os adultos passam o tempo a igualar-se às crianças sem assumir o seu lugar de adultos e de gente que devia ter crescido.

 

Somos nós os adultos que estamos a deseducar, por muito que nos custe. Tem-nos sido pedido muito. Mas às crianças não lhes tem sido pedido menos. Que as notas sejam boas. Que sejam os melhores da turma. Os mais bonitos. Os mais bem vestidos. Os que convidam mais gente para a festa, mas que, depois, não ligam aos convidados.

 

Somos nós os adultos que gritamos no trânsito como expiação dos nossos problemas e conflitos internos e que, em resposta a uma buzinadela, saímos do carro e pontapeamos o carro da frente ou proferimos impropérios capazes de envergonhar e magoar a pessoa mais bem resolvida.

 

São estes os exemplos que vemos e damos e somos. Como é que queremos que as crianças cheguem à escola e não digam palavrões? Ou não tratem os outros como nos veem a tratar os que se cruzam connosco no dia a dia?

 

É natural que este texto provoque urticária a algumas pessoas porque ninguém gosta de ver o dedo esticado na ferida que é de todos. Mas alguma coisa ainda devemos estar a tempo de fazer. Assim, como estamos, é que não me parece que possamos continuar.

Marta Arrais

Cronista

Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)

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