Sistema Binário Obsoleto
Já reparam como pensamos habitualmente de modo binário? «Pão, pão. Queijo, queijo.»— quando o sabor (para quem gosta) está no pão com queijo. «Ou acreditas em Deus, ou não acreditas.» — quando a experiência de Deus faz-se de crenças e descrenças, apesar d’Ele acreditar sempre em ti. «Ou estás dentro, ou estás fora.» — quando até o mais básico anúncio turístico de Portugal é capaz de evitar o sistema de pensamento binário dizendo “Vá para fora cá dentro”. A realidade aproxima-se da tomada de consciência de estarmos na direcção de um Sistema Binário Obsoleto.
Ao longo dos anos, vamo-nos apercebendo de que o mundo não é feito de coisas a branco e preto, mas existe um gradiente entre o branco e o preto feito de uma escala de cinzentos. E se adicionarmos cor, mais diversificada fica a nossa visão da realidade. Pensar no sistema binário que usamos contrastando qualidades, valores ou ideias, como uma abordagem obsoleta de pensar a realidade, começou ao ler o recente livro de Diogo Freitas cujo título é a pergunta que o autor faz no final da obra — “Inteligência artificial, bênção ou maldição?” — ao que respondi — nem bênção, nem maldição, mas ambas dependendo das mãos que utilizam a ferramenta. É muito semelhante a colocarmos esta questão relativamente a um martelo: bênção ou maldição? Depende se ao pregar um prego acerto antes na mão.
Se elevarmos a questão dos sistemas binários de pensamento à pessoa humana, após a experiência que fazemos nos ambientes virtuais, verificamos mais ainda como os sistemas binários de pensamento estão a tornar-se obsoletos.
Na visão cosmológica do jesuíta e paleontólogo Teilhard de Chardin, existe uma compreensão da pessoa, e até da matéria, como possuidores de um sistema binário fundamental feito de energia radial e tangencial. A energia tangencial é responsável pela coesão exterior, ligando seres e matérias no plano físico e social, enquanto a energia radial representa o movimento interior de intensificação da consciência, unificando o ser a partir de dentro. Deste modo, a tangencial assegura a ligação fundamental que mantém a estrutura global do universo, enquanto a radial aprofunda a interioridade e prepara o salto para níveis mais elevados de comunhão. É esta tensão criativa entre exterior e interior, entre semelhança aparente e unidade profunda, que, em última instância, impulsiona o devir do cosmos e a realização plena da humanidade.
À energia radial poderíamos chamar de interioridade associada a uma comunhão interna que nos faz sentir parte do cosmos como algo maior do nós, mas intimamente ligado a nós, sensibilizando-nos ou abrindo-nos à realidade de Deus em nós e entre nós. E à energia tangencial poderíamos chamar de exterioridade como a consciência de sermos distintos das coisas que nos rodeiam, dos outros e de Deus, havendo a possibilidade de nos ligarmos mutuamente. Na experiência da interioridade está a unidade e a na experiência da exterioridade está a diversidade. Porém, o curioso é que uma não existe sem a outra, tornando qualquer tentativa de criar um sistema binário de compreensão de nós mesmos com base nestas duas palavras, interioridade e exterioridade, num sistema binário, à partida, obsoleto.
A interioridade é reconhecida na exterioridade por ser o relacionamento com tudo e todos que estão fora de nós que revela a riqueza da diversidade que nos faz experimentar a liberdade inerente ao mundo. E a exterioridade é reconhecida na interioridade por ser na comunhão que acontece no íntimo de cada um de nós que experimentamos a Grande Felicidade que provém de quando nos sentimos unidos apesar da nossa diversidade. E um exemplo disso são os ambientes virtuais.
A minha experiência do crescimento que assistimos dos ambientes virtuais, sobretudo após a pandemia da Covid-19, não tem sido muito positiva. Os “quadradinhos” em que nos encontramos quando queremos estar juntos, não produz de todo o mesmo efeito que experimentamos quando estamos fisicamente presentes, onde o contacto com o outro acontece a três dimensões e com os cinco sentidos. Porém, o espaço virtual que criamos quando contemplamos a nós mesmos e os outros naqueles “quadradinhos” contém a interioridade e exterioridade de cada um, tornando-se literalmente num espaço do nós que engloba a unidade na diversidade presente em cada um. Ou seja, um ambiente virtual pode demonstrar visualmente a possibilidade do nós que transcende qualquer binarização de interioridade e exterioridade presentes em cada um.
O mundo caminha para a beleza da unidade na diversidade de pessoas, experiências, pensamentos, de tal forma que torna a tentativa de dar vida a qualquer sistema binário, obsoleta. E a profundidade última desta unidade na diversidade é a experiência que fazemos de Deus-Trindade, Deus-em-Comunhão, que nos torna pessoas-como-comunhão, sendo isso que significa sermos imagem Sua. Nesse sentido, no futuro, creio que veremos o sistema binário obsoleto evoluir para um sistema trinitário revigorante.
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