O Papa Francisco e as Fábulas…

Crónicas 11 março 2025  •  Tempo de Leitura: 5

«O advento da sociedade-confessionário marcou o triunfo definitivo daquela invenção moderna esquisita que é a privacidade – mas também marcou o início das suas vertiginosas quedas do apogeu da sua glória. Triunfo que se revelou ser uma vitória de Pirro, naturalmente, visto que a privacidade invadiu, conquistou e colonizou a esfera pública, mas ao preço de perder o seu direito ao segredo, seu traço distintivo e privilégio mais caro e mais defendido de forma ciumenta.»

 Zygmunt Bauman, La Repubblica, 09-04-2011

 

Vivemos numa sociedade de transparência e imediatismo, que não é simplesmente uma vontade de ser sincero, aberto e responsável, mas como que um novo sistema de comunicar, um de direito-dever que molda a comunicação pública. A transparência tornou-se uma ideologia totalizadora e simplificadora, que reduz tudo à visibilidade imediata. Se antigamente nos indignávamos por contarem os nossos segredos, hoje somos nós próprios a fazê-lo.

 

Por um lado, assistimos à exposição permanente de cada um através das redes sociais, mesmo nas dimensões mais íntimas da existência. As relações significativas hoje passaram da intimidade àquilo que o psicanalista e psiquiatra francês Serge Tisseron chama de extimidade: as relações consideradas como significativas passaram da intimité à extimité, isto é, da intimidade é exposição pública.

 

Eis, assim, o triunfo do exibicionismo na era das redes sociais. Se não somos visíveis, não existimos. Em primeiro lugar, pelos outros. Mas também para nós próprios. Se ninguém olha para nós, parece que perdemos o sentido da nossa própria existência. Isto leva as pessoas a partilhar aspetos cada vez mais pessoais das suas vidas, sem que isso se traduza numa partilha real. É uma falsa intimidade, pois veem-se mas na verdade, não se conhecem.

 

Como entregámo-nos voluntária e livremente às plataformas tornam-nos cada vez mais vulneráveis, porque estamos muito mais expostos. A transparência e o imediatismo, como garantia da nossa liberdade, torna-se uma condição de manipulação.

 

É neste contexto que procuro responder a tantos que me perguntam pela falta de imagens do Papa internado no Hospital Gemelli. Porque mesmo sabendo que a imagem não testemunha mais nada (creio que todos já vimos fotos com  o Papa Francisco vestido com um blusão branco de plumas brancas, gerado pela Inteligência Artificial, ou mesmo imagens com ele internado a respirar com a ajuda de uma máscara), na sociedade da transparência e do imediatismo exigimo-la como prova da verdade. Sabendo muito bem que já não há qualquer garantia de correspondência com a verdade.

 

O que se pode então fazer para sair do impasse e também para ultrapassar as teorias da conspiração? O Papa Francisco não escolheu o olho, a imagem, mas o ouvido. O som não está fora, como a imagem, mas ressoa lá de dentro, é mais íntimo.

 

«O áudio do Papa é um ato de coragem. A impressão é a de um homem que quer muita transparência, que não quer lendas sobre a sua agonia, sobre a sua morte. Mesmo que isso signifique fazer ouvir a voz de um homem que está quase no fim da vida, mas que se esforça por enviar a mensagem e dizer: “Estou aqui, não inventem fábulas sobre mim, até que o Senhor me chame, sou Papa em todos os aspetos".»

Enzo Bianchi, 8 de Março de 2025

 

A voz fraca e sofredora do Papa criou, mais uma vez, uma comunidade de escuta, que nos fez sentir não como curiosos voyeurs alinhados em lados opostos - ainda está vivo/já está morto, mas antes como participantes de um sofrimento que faz parte da vida e da sua fragilidade. Não atendeu às exigências da sociedade do imediatismo, não satisfez a nossa curiosidade, mas foi mais além. Aproximou-se mais do que uma imagem jamais conseguiria. O seu agradecimento sussurrado àqueles que rezam por ele é também um convite não chamar vida ao que não é vida. Isso são Fábulas...

Licenciado em Teologia. Professor de EMRC. Adora fazer Voluntariado.

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