Carta-testamento de Sammy Basso
«Se está a ler isto, então já não estou no mundo dos vivos. Pelo menos não no mundo dos vivos como o conhecemos. Escrevo esta carta porque se há coisa que me angustia sempre são os funerais. Não que houvesse algo de errado com os funerais, dizer adeus aos seus entes queridos é uma das coisas mais humanas e poéticas em absoluto. Porém, sempre que pensava em como seria o meu funeral, havia sempre duas coisas que não suportava: não poder estar presente e dizer as últimas coisas, e o facto de não poder consolar aqueles que me são queridos. Para além do facto de não poder participar, mas isso é outro assunto... E então, eis que decidi escrever as minhas últimas palavras, e agradeço a quem as estejam a ler. Não vos quero deixar senão o que vivi, e como esta é a última vez que tenho oportunidade de dar a minha opinião, direi apenas o essencial, sem coisas supérfluas ou outra coisa qualquer.
Quero que saibam antes de mais que vivi a minha vida feliz, sem exceções, e vivi-a como um homem simples, com momentos de alegria e momentos difíceis, com vontade de fazer bem, ora conseguindo e ora falhando miseravelmente. Desde criança, como bem sabem, a progéria afetou profundamente a minha vida, embora tenha sido apenas uma pequena parte de quem sou, não posso negar que influenciou muito a minha vida quotidiana e, por último, mas não menos importante, as minhas escolhas.
Não sei a causa e como vou deixar este mundo, certamente muitos dirão que perdi a batalha contra a doença. Não dê ouvidos! Nunca houve nenhuma batalha para travar, houve apenas uma vida para abraçar tal como era, com as suas dificuldades, mas sempre esplêndida, sempre fantástica, nem recompensa nem condenação, simplesmente um presente que me foi dado por Deus.
Tentei viver o mais plenamente possível, mas cometi os meus erros, como toda a gente, como todo o pecador. Sonhava ser uma pessoa de que se falava nos livros escolares, uma pessoa que merecesse ser recordada pela posteridade, uma pessoa que, tal como os grandes do passado, quando se fala dele, fá-lo com reverência. Não nego que, embora a minha intenção fosse ser um grande na história por ter feito o bem, parte desse desejo também se devia ao egoísmo. O egoísmo de quem simplesmente se quer sentir mais do que os outros. Lutei com todas as minhas forças contra este desejo doentio, sabendo muito bem que Deus não ama quem faz as coisas por si, mas apesar disso nem sempre fui bem-sucedido. Percebo agora, enquanto escrevo esta carta, imaginando como será o meu último momento na Terra, que é o desejo mais estúpido que alguém poderia ter. A glória pessoal, a grandeza, a fama não são mais do que coisas passageiras. O amor que se cria na vida, porém, é eterno, pois só Deus é eterno, e o amor vem de Deus. Se há coisa de que nunca me arrependi é de ter amado tantas pessoas na minha vida, e muito. No entanto, é muito pouco. Quem me conhece sabe bem que não sou um tipo que goste de dar conselhos, mas esta é a minha última oportunidade... por isso por favor meus amigos, amem quem vos rodeia, não se esqueçam que os nossos companheiros de viagem nunca são o meio mas o fim. O mundo é bom se soubermos onde procurar!
Em muitas coisas, como já vos disse, enganei-me! Durante uma boa parte da minha vida pensei que não existiam acontecimentos totalmente positivos ou totalmente negativos, que nos cabia a nós ver os seus lados bons ou obscuros. Claro que é uma boa filosofia de vida, mas não é tudo! Um acontecimento pode ser negativo e sê-lo totalmente! O que nos compete não é encontrar nele algo de positivo, mas sim agir no caminho certo, perseverar e, por amor dos outros, transformar um acontecimento negativo em positivo. Não se trata de encontrar os lados positivos, mas sim de os criar, e na minha opinião esta é a faculdade mais importante que Deus nos deu, a faculdade que mais do que qualquer outra coisa nos torna humanos.
Quero que saibam que vos amo a todos e que foi um prazer percorrer o caminho da minha vida ao vosso lado. Não vos vou dizer para não ficarem tristes, mas não fiquem muito tristes. Como acontece com toda a morte, haverá alguém entre os meus entes queridos que chorará por mim, alguém que permanecerá incrédulo, alguém que, em vez disso, talvez sem saber porquê, desejará sair com os amigos, estar juntos, rir e brincar, como se nada tivesse acontecido. Quero estar convosco nestes sentir e dizer que é normal. Para quem vai chorar, saibam que é normal estar triste. Para quem quer festejar, saibam que é normal festejar. Chorem e celebrem, façam-no também em minha homenagem. Se, em vez disso, quiserem lembrar-se de mim, não percam muito tempo com vários rituais, rezem, claro, mas levem também uns copos, brindem à minha saúde e à vossa, e sejam alegres. Sempre adorei estar em companhia e é assim que gostaria de ser recordado. Mas provavelmente levará algum tempo, e se quero realmente consolar-vos e deixar este mundo de uma forma que não se sintam mal, não posso simplesmente dizer que o tempo irá curar todas as feridas. Até porque não é verdade. Por isso quero falar-vos francamente do passo que já dei e que todos deverão dar mais cedo ou mais tarde: a morte.
Até dizer apenas o nome, por vezes, faz arrepiar a pele. No entanto, é uma coisa natural, a coisa mais natural do mundo. Se quisermos usar um paradoxo, a morte é a coisa mais natural da vida. No entanto, assusta-nos! É normal, não há nada de errado, até Jesus teve medo. É o medo do desconhecido, porque não podemos dizer que já o experimentámos no passado. No entanto, pensemos na morte de uma forma positiva: se ela não estivesse presente provavelmente não realizaríamos nada nas nossas vidas, porque de qualquer forma, há sempre um amanhã. Já a morte faz-nos saber que nem sempre há amanhã, que se queremos fazer alguma coisa, o momento certo é “agora”!
Para um cristão, porém, a morte é também outra coisa. Uma vez que Jesus morreu na cruz, como sacrifício por todos os nossos pecados, a morte é a única forma de viver verdadeiramente, é a única forma de finalmente regressar à casa do Pai, é a única forma de finalmente ver a Sua Face. E como cristão enfrentei a morte. Eu não queria morrer, não estava pronto para morrer, mas estava preparado. A única coisa que me deixa melancólico é não poder estar presente para ver o mundo mudar e seguir em frente. De resto, porém, espero ter podido, no meu último momento, ver a morte como a viu São Francisco, cujas palavras me acompanharam durante toda a minha vida. Espero que também eu tenha conseguido acolher a morte como “Irmã Morte”, à qual nenhum ser vivo pode escapar.
Se fui digno na vida, se carreguei a minha cruz como me pediram, agora sou do Criador. Agora estou com o meu Deus, com o Deus dos meus pais, na sua Casa indestrutível. Ele, o nosso Deus, o único Deus verdadeiro, é a primeira causa e o fim de tudo. Perante a morte nada faz sentido a não ser Ele. Por isso, embora não haja necessidade de o dizer, uma vez que Ele sabe tudo, assim como vos agradeci também quero agradecer-Lhe. Toda a minha vida devo-a a Deus, cada coisa bela. A Fé acompanhou-me e eu não seria quem sou sem a minha Fé. Ele mudou a minha vida, pegou-a, fez dela algo de extraordinário e fê-lo na simplicidade do meu dia a dia.
Nunca se cansem, meus irmãos, de servir a Deus e de se comportarem de acordo com os seus mandamentos, porque nada tem sentido sem Ele e porque cada ação nossa será julgada e decretará quem continuará a viver eternamente e quem terá de morrer. Certamente não fui o melhor dos cristãos, certamente fui um pecador, mas isso já não importa: o que importa é que tentei dar o meu melhor e voltaria a fazê-lo. Não vos canseis, meus irmãos, de carregar a cruz que Deus designou a cada um, e não tenhais medo de procurar ajuda para a carregar, como Jesus foi ajudado por José de Arimateia. E nunca desistam de uma relação plena e confidencial com Deus, aceitem de boa vontade a Sua Vontade, pois é nosso dever, mas também não sejam passivos, e façam ouvir bem a vossa voz, deem a conhecer a Deus a vossa vontade, assim como fez Jacob, que por se ter mostrado forte foi chamado Israel: Aquele que luta com Deus.
Certamente, Deus, que é mãe e pai, que na pessoa de Jesus experimentou todas as fraquezas humanas, e que no Espírito Santo vive sempre em nós, que somos o seu Templo, apreciará os vossos esforços e os guardará no Seu Coração.
Vou deixá-los agora, como já disse, não gosto de funerais quando se tornam demasiado longos, e não fui curto. Sabem que nunca poderia imaginar a minha vida sem vós e, se pudesse escolher, ainda assim escolheria crescer ao vosso lado. Estou feliz por amanhã o Sol nascer novamente...
Minha família, meus irmãos, meus amigos e meu amor, estou perto de vós e se me for permitido, vou zelar por vós, quero-vos bem!
P.s. Não vos preocupeis, tudo isto é apenas sono atrasado...
[Tradução Paulo J. A. Victória | Avvenire.it]