O papa Francisco não é um ovni

Vaticano 18 maio 2017  •  Tempo de Leitura: 4

Como é que um conclave de velhos cardeais teve a liberdade e o risco de apostar num perfil como o de Bergoglio?

Uma das linhas mais persistentes de interpretação do Papa Francisco, fora e dentro do espaço católico, insiste em construir, a seu propósito, uma espécie de teoria da excecionalidade, que, parecendo que o destaca, apenas o captura numa hermenêutica elementar e inconsequente. Tanto a larguíssima maioria que o escuta, como quem mantém as mediatizadas dubia em relação à sua pessoa e programa, anotam sobretudo o que o distingue: na evidente pulsão reformista que transporta; na ousadia de trazer as periferias até ao centro; na despojadíssima linguagem simbólica que adota, sendo ele o representante máximo de uma instituição onde a ritualização do poder se expressa pela acumulação simbólica. Mesmo a narrativa dos meios de comunicação social é isso que explora, interpretando-o como uma voz completamente singular, como um solitário líder carismático e um dos poucos atores da cena mundial que surpreendem positivamente pela palavra e pelos gestos. À primeira vista a “teoria da excecionalidade” tem tudo para funcionar e ainda hoje o grande enigma é como é que um conclave de velhos cardeais, num momento tão grave como o da renúncia de Bento XVI, teve a liberdade e o risco de apostar num perfil como o de Bergoglio. As primeiríssimas declarações de Francisco como Papa, caminhando aparentemente nesse sentido pedem, no entanto, para ser lidas com outro alcance: “Vós sabeis que o dever do Conclave era dar um bispo a Roma. Parece que os meus irmãos cardeais tenham ido buscá-lo quase ao fim do mundo...”

Em que finis terrae os cardeais se implicaram? Não nos confins geográficos de proveniência do eleito, mas na compreensão de que um mundo tinha quase chegado ao fim e era urgente dar lugar a outro. Que outro mundo é esse? Bergoglio é Bergoglio por ter emergido na cultura eclesial do Concílio Vaticano II (1962-1965) e na receção inovadora que o Concílio teve nas igrejas da América Latina. Bergoglio é Bergoglio pelo modo como os jesuítas realinharam a sua missão em consonância com o espírito conciliar e apontaram o subcontinente americano como um laboratório criativo, com todas as tensões e desafios associados. Bergoglio é Bergoglio porque os episcopados da América Latina (CELAM) decidiram fazer da sua vizinhança uma causa comum, publicando alguns dos documentos mais marcantes da Igreja contemporânea (Medellín, Puebla, Santo Domingo, Aparecida), onde a Igreja deixa de autorrepresentar-se como uma fortaleza, mas como casa aberta a todos e a temática dos pobres e vulneráveis surge como ponto prioritário.

O pior que pode acontecer é olhar para o Papa Francisco como um ovni. Claro que para compreendê-lo é essencial ler os Evangelhos ou a poética radical de Francisco de Assis. Mas não se entende Francisco sem o conceito de biopolítica de Foucault, e da sua denúncia de que, no neoliberalismo, a liberdade produz-se negando-se; sem o retrato da vida nua perante a arbitrariedade dos poderes soberanos de que fala Giorgio Agamben; sem a dialética communitas/immunitas que os escritos de Roberto Esposito iluminam, onde a imunidade surge como o fechamento numa identidade da qual se exclui os outros, organizando em torno a ela os múltiplos cordões imunitários que conhecemos; sem o desejo de comunidade de que fala Zygmunt Bauman numa modernidade que tende a liquidificar todas as identidades; sem o alerta de Michael Burawoy: quando o mercado é imposto como única solução para todos os problemas humanos, denunciar a ditadura do mercado torna-se a condição necessária para afirmar a esperança. O Papa não fala sozinho e isso reforça a sua voz.

 

Revista Expresso | 2324, 13 de maio de 2017]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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