UMA PERGUNTA DE NATAL
Talvez a etimologia da palavra “desejo” se deva procurar na gramática militar, nessa figura dos desiderantes, de que falou pela primeira vez Júlio César na sua obra “De Bello gallico”. Desiderantes eram os soldados que, a céu aberto, esperavam o regresso dos seus companheiros do campo de batalha. Uma imagem estranha e ao mesmo tempo poderosa, que reúne no desejo dois sentimentos importantes: o tempo da espera e o permanecer em vigília, ambos vividos sob o descampado infinito dos céus. E o desejo parece ter também a ver com estes. De facto, “sidera” significa, em latim, estrelas. E o “de”, interpretado como privativo, descreve a impossibilidade de alcançá-las aí, no firmamento. Na definição fundamental de “desejo” está assim essa mistura de atração e distância, de impossibilidade e inconformismo que a contemplação dos espaços siderais exerce em nós. A lonjura não é só lonjura: é uma inusitada vontade de vencê-la. A ausência não é só ausência: é uma mobilizadora expectativa. Por um lado, experimentar o desejo é fazer a experiência de que somos superados: sentimo-nos transportados por uma força ou emoção que nos ultrapassa e que se sobrepõe a tudo. Mas, por outro, é também acolher uma tensão que positivamente nos deixa em estado de vigilância, em insatisfação ativa, pois percebemos que dependemos disso que é maior do que nós. A experiência do desejo é assim dialógica, pois coloca-nos perante uma alteridade, rosto e rasto de um ‘para-lá-de-nós’, de uma transcendência.
No caminho de maturação da nossa vida é fundamental escutarmos o nosso desejo. Qual é o meu desejo profundo? — é uma pergunta de Natal. Ele soletra-se, como sabemos, através de muitas linguagens e essas constituem ainda para nós idiomas estrangeiros que precisamos de aprender: o que vem dito no tracejado das emoções e dos afetos, na transparência e na opacidade do nosso olhar, nos movimentos inseparáveis do nosso corpo e da nossa alma, no modo como a palavra e o silêncio se temem ou se procuram, no dom e no que nos impede ainda de ser dom. Pode parecer-nos um capital muito desprovido, o dos nossos desejos, ou até acontecer que nos envergonhemos dele e o rejeitemos. Mas, se lhe fecharmos a porta, Deus não encontrará, como há dois mil anos, uma hospedaria para nascer.
As nossas sociedades que impõem o consumo como padrão de felicidade transformam o desejo numa armadilha. O desejo tem a dimensão de uma montra e promete uma satisfação imediata e plena que evidentemente não pode cumprir. Vemos um objeto iluminado numa vitrina e, nesse momento, ele parece-nos conter o brilho do astro distante pelo qual ansiamos. É mesmo aquele, pensamos, enquanto avançamos para a fila da caixa registadora embevecidos com aquele ato de satisfação simbólica. Mas uma vez comprado, o objeto não parece o mesmo, perdeu alguma coisa que tínhamos por irresistível, já não tem a consistência da promessa, como se a posse implicasse uma desvalorização. E com isso cresce em nós um vazio que nos faz voltar. A desilusão empurra-nos para o circuito insone do consumo, onde o nosso desejo adoecido se torna o desejo de nada, a pura metonímia da nossa carência. O objeto do nosso desejo é um ente ausente, um objeto sempre em falta. Obsidiados pelo transe comercial desejamos tanto que já não somos capazes de desejar.
Uma das mais belas frases que conheço encontrei-a num texto da diáspora cristã dos finais do século I, a Primeira Carta de Pedro. E exorta assim: “Como crianças recém-nascidas, desejai” — 1P e 2, 2). Está tudo aqui: o facto do Natal de Deus e o programa do nosso.
[©Revista Expresso | 2356, 23 de dezembro de 2017]