As folhas
Um destes dias, numa roda casual de amigos, contei que vira várias pessoas a caminhar na berma da estrada em vez de o fazerem pelos passeios. E um desses amigos logo me esclareceu: “Mas não percebes porquê? (E sorriu.) É por causa das folhas.” Tive de confessar que não tinha visto as folhas, e sei agora que estava a perder muito. É verdade que elas tornam os passeios escorregadios, em particular se misturadas com a chuva ou alguma humidade. É verdade que podem amontoar-se inacreditavelmente e avançar como se obedecessem a um plano para camuflar o visível. Mas, deve reconhecer-se, que as folhas por si mesmas, as simples folhas, as folhas todas juntas são um grandioso espetáculo.
Desde aí tenho reparado nas folhas. São uma imensa população que se despede em festa, riscando ao acaso, com lápis de cor, o uniforme do chão. Não fazem ruído quando tombam, quando se sobrepõem em camadas, quando se apresentam solitárias, quando os nossos pés as condenam, quando se estilhaçam por si e se dispersam, quando se fundem com a terra a ponto de não as distinguirmos. Nestas semanas de outono são um cinema que não encerra: exibem em contínuo o amarelo, o ocre, o verde-barro, o verde-mate, o azeitona vítreo, o avermelhado, o laranja, o pontilhado negro. E estão sempre a chegar. Basta um sopro de vento e, imediatamente, centenas delas se soltam no ar, numa dança inventiva, rodopiada e lenta; numa incrível chuva de ouro; numa música silenciosa que desce. Se calha atravessarmos um jardim, esta visão ganha a magistral precisão de uma coreografia. Contudo, ela também é bela de seguir no imprevisto de uma rua que se dobra ou surpreendida de uma janela, num daqueles momentos em que coincide erguermos os olhos e esse presente nos é oferecido.
As crianças, neste assunto das folhas, sabem mais do que nós. Lembro-me de ter perguntado a uma miúda dos seus quatro anos se já tinha reparado no tapete maravilhoso que as folhas nos oferecem. Ela ouviu-me interessada. Eu expliquei-lhe como aquele era um tapete fofo, como as cores se divertiam a espalhar-se numa evidente brincadeira, como era bonito e precioso. Ela então largou a minha mão, deu um salto para o meio das folhas e disse alto, com aquela solenidade que se tem aos quatro anos de idade: “Olá, tapete!” Saudava assim com entusiasmo não só aquele fragmento do mundo que identificava, mas o inteiro outono ou mesmo a inteira vida.
À sua maneira é também de folhas, e talvez só de folhas, que fala o texto dramático que Tiago Rodrigues acaba de editar e que se chama “Sopro” (Ed. Bicho-do-mato, 2017). Trata-se de uma homenagem a Cristina Vidal, que trabalha como ponto no teatro D. Maria II, há mais de duas décadas, e que nesta peça passa de detrás das cortinas para protagonista da história. Mesmo a acabar a peça, alguém pergunta a Cristina Vidal o que faria ela se alguma vez estivesse sozinha diante dos espectadores. Ela então contou o seguinte: uma grande atriz, em fim de carreira, representava a Berenice de Racine e teve uma branca ou faltou-lhe o ar e ficou à espera da ajuda do ponto. Mas essa foi a única vez em que Cristina Vidal se deixou levar pelo silêncio. A atriz deveria dizer ainda sete versos, apenas sete, eles estavam escritos nas folhas que a ponto segurava. Esta, porém, achou aquele silêncio mais tocante, mais perfeito do que qualquer palavra gravada nas suas folhas e nada disse. A peça terminou assim. Praticamente o público nem deu por nada, mas a atriz decidiu não voltar a representar. E Cristina Vidal confessa agora que se algum dia pisasse a frente do palco seria para recordar o rumor das folhas desses versos que ficaram por representar.