Semana Santa, por Tolentino Mendonça

Crónicas 27 março 2018  •  Tempo de Leitura: 5

Para percebermos os textos sagrados que a tradição cristã se propõe de novo reler, às portas da Semana Santa que agora começa, é importante recordar que eles são escritos quando Jesus era absolutamente insignificante para o mundo e para a cultura. Nós hoje reinterpretamos essas narrativas a partir da referencialidade histórica que Jesus foi adquirindo nestes 2000 anos. Ora, quando estes discípulos começaram a contar o destino de Jesus, com o desejo de preservar a memória e de melhor a entender, Jesus não tinha qualquer importância, a não ser para eles. Em nenhum recanto do vasto Império Romano Jesus era considerado, recordado ou entrevisto. As vidas narradas por Plutarco ou por qualquer cronista secundário eram infinitamente maiores do que a sua ignorada vida. Os próprios seguidores não tinham a certeza de que aquela existência viesse a interessar a alguém para lá do círculo das pessoas que sentiram dolorosamente a sua morte e tateavam agora os contornos da inédita insurreição de uma presença, num misto de embaraço e de esperança irredutível. O que parecia insignificante para o mundo ganhava para eles, nesses dias, uma incalculável significação, mas que mal cabia ainda nas suas palavras e nas temerosas confissões de fé que esboçavam. Na tímida aventura humana que então construíam, individualmente ou em comunidade, Jesus emergia de forma paradoxal, mas cada vez mais claramente como decisivo motor de sentido.

 

É verdade que a teologia que emerge dos evangelhos é um relato de fragilidade. Contudo, na sua frágil humanidade, Jesus tinha alguma coisa que o tornava, de facto, capaz de refundar o coração dos que se cruzavam com ele. Se quiséssemos resumir o que muda no interior dos amedrontados discípulos, diríamos que é a progressiva perceção de que em Jesus assomava de forma inédita a força do próprio Deus. Com a sua vida e a sua morte, Jesus descera a abraçar todos os silêncios, mesmo aqueles abissais, mesmo aqueles longínquos, redizendo a vida como possibilidade de infinito. Ele abraçou este tempo amassado entre derrotas e esperanças, entre naufrágios e começos, que é o da nossa existência. Ele abraçou o silêncio dos nossos impasses, daquilo que em nós ou de nós é omitido; o silêncio desta sôfrega indefinição que somos entre já e ainda não. Jesus morreu por nós, porque fez da sua vida oferta, dom, encontro, rasgar de caminhos, emergência da largueza do Reino nos estreitos raciocínios da história.

 

É também paradoxal, e não podia não sê-lo, o modo como os evangelhos contam a ressurreição. Desconcerta que não exista nos discípulos uma crença imediata, que não considerem as provas avançadas sem refutação ou não tomem os primeiros testemunhos por inabaláveis. A notícia da ressurreição começa por ser vivida com suspeita, desconfiança, receio, distância. A frase de Tomás, “Se eu não o vir, não acredito”, é, no fundo, a posição de todos. A notícia circulava em voz baixa, como uma insinuação que não era tomada muito a sério. Os dois discípulos de Emaús já a tinham ouvido, mas mesmo assim estavam dispostos a abandonar tudo. Contudo, o anúncio da ressurreição vai crescendo. Mesmo não acreditando nas mulheres, Pedro e João correm ao sepulcro. E João vê o silêncio dos sinais e acredita. Os dois discípulos foragidos reconhecem Jesus numa hospedaria de estrada e regressam a Jerusalém. O próprio ressuscitado vem ao encontro de Pedro e dos discípulos atravessando as portas que eles tinham fechado. E Jesus estende as mãos às dúvidas de Tomé. Pouco a pouco, é em torno àquilo que primeiro declararam impossível que eles agora se reúnem e vivem.

 

RevistaExpresso | Edição 2264 | 19/03/16]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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