A ORAÇÃO MUÇULMANA
A Comunidade Islâmica em Portugal comemora este ano o seu 50º ano de existência. São cerca de 50 mil crentes fixados por várias regiões, fundamentalmente na área da Grande Lisboa (que é o grande laboratório português da diversidade religiosa), no Porto e no Algarve. Uma parte significativa dos jovens que compõem a Comunidade nasceu já em Portugal, mesmo se os seus pais e avós vieram do exterior, sobretudo a partir de 1975. É uma boa ocasião para uma saudação fraterna, reconhecendo o seu significativo papel na nossa sociedade.
Lembro-me de uma história que contava o escritor italiano Tonino Guerra. Numa viagem de automóvel, em companhia do cineasta Michelangelo Antonioni, pela região do Cáucaso (entre a Geórgia, a Arménia e o Azerbaijão), avista a dada altura, nuns arrabaldes vazios, um crente muçulmano que desenrola um tapete, se descalça e prostra (assumindo a posição do sujud) ali mesmo para a oração, voltado para Meca. Muitos anos depois, Tonino Guerra destacava essa como uma das imagens que mais o impressionou em toda a sua vida. No meio daquela terra de ninguém, um homem qualquer investia o tempo de um impressivo halo sagrado, recorrendo unicamente ao poder plástico que tem o rito e à força espiritual de uma oração repetida. E isso deixou fascinados aqueles dois criadores europeus, que talvez tenham rezado longinquamente na infância, mas agora, instalados na dúvida e na abstração da racionalidade como modo de existência, não sabiam como arrumar o gesto que servia àquele anónimo, no sítio mais remoto do mundo, para ligar-se invisivelmente à sua comunidade de fé.
De facto, talvez a ocidente, sugestionados pela gramática da estranheza, do medo e do conflito com que a abordagem à religião muçulmana passou, de uma forma redutora, a ser feita no espaço público, nem tenhamos imediatamente presente a maravilhosa expressão orante do Islão. A oração quotidiana, repetida cinco vezes ao dia, é um dos cinco pilares deste caminho religioso. A par da profissão de fé, da esmola, do jejum no mês do Ramadão e da peregrinação a Meca, no centro da obediência (umma) islâmica está a prática hodierna de oração, que constitui uma evidente espiritualização do quotidiano. São frequentes no próprio Alcorão — de modo paralelo ao que encontramos na Bíblia hebraica e cristã — os incitamentos à oração, fazendo o seu louvor: “Recordai-vos, portanto, de Mim, e eu Me recordarei de vós; sede gratos para Comigo e não me renegueis” (II,152); “Cumpri a oração nas duas partes do dia e ao começo da noite; porque as boas ações afastam as más” (XI,114). E há — tal como na Bíblia hebraica e cristã — uma preocupação para que a oração decorra não como mero formalismo mas como um ato de piedade a Deus que nos avizinha também dos irmãos: “Ai daqueles que rezam e estão distraídos da oração, que a realizam para fazer-se ver, e recusam fazer esmola” (CVII, 4-7). A oração é considerada como uma forma de imitação dos grandes profetas, desde Abraão a Maomé. Uma antiga tradição muçulmana relata mesmo que as últimas palavras de Maomé terão sido “salat, salat”, ou seja, “oração, oração”.
A oração ritual para ser válida deve respeitar alguns requisitos. O primeiro é de natureza espiritual e manifesta-se pela declaração de pureza de intenções (niyya), porque “as ações valem segundo as suas intenções”. O segundo é corporal e tem também uma natureza purificatória, que se concretiza na ablução. O terceiro tem a ver com o espaço: a oração pode desenvolver-se em qualquer espaço, mesmo precário, desde que não sujo ou impuro. O quarto tem a ver com a distribuição quinária da oração, assim espaçada no decurso do dia. A oração muçulmana perfuma e ajuda também os não-muçulmanos.
[Revista Expresso | 2368, 16 de Março de 2018]