Demasiado velhos para voar?
A quem se destina “O Principezinho”? Porventura menos àqueles que são hoje crianças do que às crianças que os adultos foram um dia, mesmo se, no seu confuso mundo de pessoas crescidas, essa seja uma memória ameaçada, extinta ou tida por inútil. “O Principezinho” é, assim, um relato para agitar escombros, repropondo aos adultos distraídos, que afinal somos todos, o mistério da vida como ele é (e que, de tão óbvio, tanta dificuldade temos em ver). A demanda interplanetária a que a personagem do principezinho se propõe, ao deixar o seu asteroide B 612, destina-se, no fundo, a provocar um efeito de aproximação. O encontro com os planetas dos outros permite-nos reconhecer com maior realismo o que está enraizado no nosso: não só a rosa (o que nos faz viver), não só o embondeiro (o que nos faz morrer), mas a arte de gerir as “sementes invisíveis” de um campo e de outro. Somos essa mistura, é verdade, mas podemos fazer alguma coisa para lá de nos tornarmos, como parece que fatalmente acabamos por nos tornar, especialistas em crepúsculos. É que a metamorfose acontece no “Principezinho” quando ele decide procurar um conhecimento que nos leve para lá das fronteiras do nosso planeta, tendo claro que o verdadeiro conhecimento nunca é exterior apenas, mas tem de alargar o mundo interno. Por isso, não sendo propriamente um livro religioso, este texto de Saint-Exupéry representa uma oportuna mistagogia — uma espécie de introdução ao mistério da existência —, num tempo em que essas iniciações escasseiam. E, ao dar voz a uma criança, ele explica-nos que não temos de buscar uma sabedoria totalmente nova, com a qual nunca contactámos. Pelo contrário, a sabedoria de que necessitamos é uma possibilidade que está connosco desde o princípio, porque ela consiste num regresso espiritual à infância, aqui representado mais como o regresso a um estilo e a uma forma de vida, do que a uma estação biográfica. A intensidade das metáforas, a linguagem onírica e visionária, a densidade simbólica convida-nos a uma única exploração: a do país desconhecido que é, tantas vezes, o nosso coração. O rei, o acendedor de candeeiros, o geómetra, a raposa, a rosa, o adulto solitário e a serpente oferecem-nos um espelho para a identificação do nosso rosto aprisionado por máscaras e que, talvez, ainda não chegamos a contemplar na sua inteireza. A razão do incrível sucesso editorial desta narrativa, que celebra neste 2018 os 75 anos da sua edição original, é indissociável deste convite a uma aventura interior cheia de perguntas em aberto e enigmas que sem se desvelarem são capazes de desvelar-nos a nós próprios.
“O Principezinho” é, assim, um relato para agitar escombros, repropondo aos adultos distraídos, que afinal somos todos, o mistério da vida como ele é
Saint-Exupéry escreveu este seu livro durante a Segunda Guerra Mundial, quando estava exilado nos Estados Unidos, a recuperar de ferimentos de combate, atormentado por tantas incertezas sobre o futuro e suspeitando que tudo à sua volta poderia colapsar. Mais de setenta milhões de seres humanos perderam a vida nesse que foi o maior conflito da história da humanidade. Como é que tal inferno foi possível? Saint-Exupéry sabia que a primeira falência é sempre a dos valores. E que quando as mentalidades se tornam egoístas e passivas distorcem irremediavelmente o essencial. “O Principezinho” é, por isso, um grito, um libelo de denúncia que é preciso saber ler nas entrelinhas. Numa linguagem parabólica procura tocar os leitores de todos os tempos com uma ética contrária àquela com que se escrevem as guerras, expressando uma urgente preocupação pelo nosso futuro comum. Naquele ano de 1943 Antoine de Saint-Exupéry tinha 42 anos de idade, e era considerado já demasiado velho para voar. Seria?