O POUCO QUE SABEMOS DA ESPERANÇA

Crónicas 19 junho 2018  •  Tempo de Leitura: 4

A esperança é um tema em contraciclo. Se nos perguntarmos porquê, as hipóteses de resposta serão necessariamente múltiplas, mas uma delas será o sentimento de que vivemos hoje a ressaca de tantas esperanças projetadas, a cinza devoluta dos nossos sonhos dispersos. Não é que não precisemos do discurso da esperança, mas, ou porque não vemos como ou porque desacreditamos dela, a esperança perdeu presença no espaço público e no pensamento contemporâneo. Um dia, um amigo fez a Franz Kafka a seguinte pergunta: “Há esperança para nós?” Kafka terá respondido: “Sim, existe esperança, e uma esperança infinita, mas não para nós.”

 

Um dos romances emblemáticos para um certo espírito militante, no século XX, foi o de André Malraux “L’espoir”. Publicado em dezembro de 1937, “A Esperança” descreve o início do conturbado período de conflito civil que dilacerou a Espanha entre 1936 e 1939. E fá-lo com a tinta do desencanto. No final, o protagonista está sozinho, e estas são as últimas palavras do volume: “Manuel escutava pela primeira vez a voz do que é mais grave que o sangue dos homens, mais inquietante do que a sua presença na terra: — a infinita possibilidade do seu destino; e sentia nele essa presença misturada ao rumor dos regatos e ao passo dos prisioneiros, permanente e profunda como as pancadas do seu coração.” De facto, a esperança permanece como infinita possibilidade de destino para o ser humano e é profunda como as pancadas do coração. Mas vivemos, porventura, tempos com maior dificuldade em ouvi-la.

 

 

Uma coisa é certa: o embaraço atual com que olhamos a esperança obriga-nos também a purificar as representações que fazemos dela. Tornou-se insuportável o discurso de uma esperança isenta, empolgada, ligeira, fácil, imediata. Se um reencontro com a esperança tem hoje cabimento é com uma esperança que aceite a prova de fogo da desesperança e que de alguma maneira a integre no seu próprio processo. O elogio possível é o de uma esperança que não ignore o enigma e o absurdo de tantas situações da história nem se pretenda ainda triunfalista ou autorreferencial, mas se mostre como uma esperança humilde, silenciosa, amadurecida, depurada.

 

Jacques Lacan, num tom provocador, escreveu que a angústia, em vez da esperança, é aquilo que não engana, exatamente pelo excesso de real que dela resulta. Porém, tal como o mal-estar é um sintoma a que é preciso acudir, que não se pode negligenciar sob risco de comprometer a totalidade da vida, assim deve ser vista a esperança. Ela não é uma exalação imaginária, uma ficção que nos separa do curso da existência. Pelo contrário, está tatuada no presente mais quebrado e escarno, exercita-se na tribulação, aprofunda-se na paciência, alarga-se na capacidade de resistir ao mal e ao sem sentido.

 

Somos todos experiência do inacabado, indagação no incompleto, na dureza e opacidade de pedra que, não raro, é a do tempo que nos cabe viver. E a esperança não nega ou contradiz isso. A esperança é uma gestação espiritual que ocorre precisamente nessas circunstâncias. É a esperança que entreabre, que faz descobrir, para lá das duras condições, possibilidades ainda escondidas. A esperança, se quisermos, é a arte de acolher pacientemente a vida e partir daí para um trabalho incessante de ressignificação (que é, como sabemos, em grande medida, um trabalho de reconciliação). A nossa existência, do princípio ao fim, é o resultado de uma aprendizagem da esperança, e só ela é capaz de dialogar com o futuro e de o aproximar.

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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