ANDAR A PÉ

Crónicas 8 agosto 2018  •  Tempo de Leitura: 4

Acompanho, há um tempo, a história de Matt Green, um engenheiro civil norte-americano, que anda há seis anos e meio a realizar uma peregrinação singular: propõe-se percorrer todas as estradas dos cinco distritos da cidade de Nova Iorque. Matt Green explica assim o seu projeto: “Em vez de avistar um milhão de lugares em apenas um minuto, vou empregar um milhão de minutos a explorar cada lugar. E quando tiver palmilhado cada rua de cada quarteirão de cada distrito, terei viajado por milhares de quilómetros dentro de uma única cidade.” As suas jornadas começam pelas dez da manhã e vão até ao anoitecer, percorrendo não mais do que sete a nove quilómetros diários. Mais importante do que a extensão percorrida é o modo atento como o faz: sensível aos pormenores da paisagem que normalmente não vemos; disponível para o encontro daquilo que, só na aparência, pode ser tomado por insignificante; conservando o tempo interior necessário para acolher a surpresa e a revelação que a todo o momento nos buscam. E, com isso, este curioso peregrino confessa ter aprendido duas coisas. A primeira delas é que precisamos de reforçar o investimento de confiança que fazemos no mundo. Mais do que temido e evitado, Green insiste que o vasto mundo e o nosso mundo mais próximo têm de ser explorados, apreciados e celebrados. Há mais bondade pulsando na realidade do que aquela que supomos, e um dos dramas dos nossos estilos apressados é precisamente o silenciamento a que a votamos. Quantas histórias de dedicação e generosidade, quantos gestos gratuitos, quantas trocas amistosas nutrem diariamente a vida sem que nos demos conta! A segunda coisa é que se arriscarmos manter abertos os nossos olhos descobriremos que a beleza mora em todos os lugares, mesmo onde não o diríamos. Debaixo do nosso nariz há um inteiro universo que não vemos. E não temos de escolher apenas elementos especiais: na paisagem comum, nos circuitos habituais que sonambulamente percorremos escondem-se infindas possibilidades para o espanto.

 

Por isso, no seu “Elogio da Marcha”, o antropólogo David Le Breton explica: “Caminhamos sem precisar de motivo, pelo prazer de degustar o tempo que passa, para descobrir lugares e rostos desconhecidos e também, simplesmente, para responder ao apelo da estrada. Caminhar oferece-nos uma tranquila possibilidade de reinventar o tempo e o espaço, e, com isso, experimentarmos uma alegre humildade diante do mundo.” Gosto muito desta expressão final: “Uma alegre humildade diante do mundo.” O nosso ponto de vista de pedestres é efetivamente mais desarmado e, ao mesmo tempo, mais exposto à pura alegria de existir, essa flor sem porquês. Assumimos a andar a pé uma condição de vida mais frugal, purificada das falsas necessidades que nos pesam e aprisionam. Redescobrimo-nos capazes da contemplação, refeitos da cegueira das imagens que nos obsidiam. Por isso, não raro, uma simples caminhada restitui-nos aquela paz e sabedoria que nos faltam; permite-nos interrogarmo-nos sobre nós próprios e sobre as relações que tecemos; mostra-nos a alternativa e a brecha na sombra compacta e férrea onde os dias colidem. Não admira que se venha escrevendo uma biblioteca imensa sobre a arte de caminhar. Friedrich Nietzsche tinha razão: a filosofia da existência não se escreve só com a mão, mas também com os pés. Mestres tão diferentes como Rousseau, Schopenhauer, Walter Benjamin e Martin Buber ou como Ernst Jünger, Maria Zambrano ou Henry David Thoreau deixam isso bem claro. E, do mesmo modo, a espiritualidade que nos recorda quanto a nossa alma se esclarece no aberto da estrada e como andar a pé é uma das formas de rezar.

 

[SEMANÁRIO#2388 - 04/08/18]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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