ANDAR JUNTO AO CHÃO
Foi o escritor Gonçalo M. Tavares que um dia, na Capela do Rato, me disse: “Vocês poderiam retirar todas estas cadeiras e encher de areia o pavimento, para lembrar aos crentes que a fé é experiência de nomadismo e estrada, mais do que confortável sedentarismo.” Ele talvez nem se recorde já, mas, desde aí, isso ficou-me na cabeça e tenho contado muitas vezes esta história, embora, confesso, mais como repto a uma desinstalação interior do que propriamente como desafio a uma reconfiguração do espaço sagrado em tais moldes.
Depois aconteceu isto: há muito tempo que na Capela do Rato, onde fui estes anos capelão, se vinha pensando aproveitar o habitual fecho estivo da capela para lançar um convite a artistas que nos ajudassem, com outras linguagens e até outros pontos de vista, a aprofundar a procura que ali, em comunidade, fazemos. A Luísa Soares de Oliveira aceitou ficar como curadora deste projeto e propôs uma dupla para iniciá-lo: Carlos Nogueira, que criaria uma instalação, e o poeta Manuel de Freitas, que teria à sua responsabilidade a elaboração dos textos. Ora, logo nas primeiras conversas, e sem saber do comentário de Gonçalo M. Tavares, Carlos Nogueira propôs-se retirar as cadeiras do espaço e cobri-lo com escória de ferro, ocultando completamente o soalho atual e forçando a que, no caminhar, tomemos maior consciência da forma e do som dos nossos próprios passos (coisa tão necessária, mas afinal tão pouco frequente). Este verão, quem entrar na capela escutará antes de tudo a marcha dos seus passos através da escuridão. E não é fácil caminhar sobre a gravilha irregular ali colocada: é como se o corpo precisasse de se interrogar de novo acerca disso que é mover-se de um ponto a outro, de uma exterioridade a um interior, de um aqui a um além. Sim, que trânsito é esse? E ainda: como se faz? É como se o nosso corpo fosse implicado num processo de interrogação, pensamento e reaprendizagem.
Na clareira central, Carlos Nogueira colocou uma escultura de ferro, longa e branca como uma mesa aberta ou um sepulcro vazio. O impacto do branco é obtido por uma coesa camada de sal sobre a qual recai uma luz que acentua o cromatismo. Um branco assim pode ser lido como um signo cristológico, pois recorda a passagem do Evangelho de Marcos, no episódio da transfiguração de Jesus: “As suas vestes tornaram-se tão brancas como nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia branquear” (Mc. 9,3). E se tivermos presente que o branco da escultura é uma exalação do sal, encontramos um novo envio a Jesus, que disse aos seus discípulos: “Vós sois o sal da terra” (Mt. 5,13). No antigo ritual do batismo, colocava-se na boca do neófito um grão de sal, enquanto o celebrante repetia: “Deus dos nossos pais, Deus, autor de toda a verdade, encarecidamente vos pedimos, olhai com bondade para o vosso servo que acaba de provar este primeiro alimento, o sal. Saciai-o quanto antes com o pão celeste.” Talvez não seja despropositada esta referência ao batismo, pois Carlos Nogueira pontua também o silêncio da capela com o som da água que corre — na gramática cristã, uma alusão à fonte batismal — e de um vento delicado que esparsa o invisível — símbolo da efusão do Espírito Santo e dos seus dons.
A exposição chama-se “Junto ao Chão” e, como explica o poeta Manuel de Freitas, “num silêncio cada vez maior... oferece-nos um chão perdoável”. Acho que é exatamente isso, qualquer que seja a chave com o que o interpretemos.
[“Junto ao Chão” — Capela do Rato, Lisboa, de 26 de julho a 9 de setembro, quinta-feira a domingo, das 14h30 às 19h]