ALGUMAS NOTAS SOBRE A GENTILEZA

Crónicas 1 setembro 2018  •  Tempo de Leitura: 4

Quando me perguntam se tenho vontade de rever algum filme, digo sempre que sim. E, mesmo que me ponha a falar de outros (a vida também é bela porque é vária, certo?), sei, contudo, que ao meu pensamento acorrerá o “À Volta da Meia-Noite” (“Round Midnight”, 1986), de Bertrand Tavernier. O enredo do filme é ambientado no final de 50 e centra-nos na personagem de Dale Turner, um saxofonista negro americano magistralmente interpretado por Dexter Gordon, errante e inadaptado, como um estranho sobre a Terra. Vemo-lo a maior parte do filme, extremo, irresolúvel e doce, arrastar a sua solidão de palco em palco, de quarto de hotel em quarto de hotel, entre Nova Iorque e Paris, naufragando pesadamente numa dor maior do que a vida. Até que um admirador parisiense, apaixonado pelo músico grandioso que ele foi, arrisca mostrar-lhe que a amizade talvez possa resgatar a sua história. O filme é também sobre isso, sobre o que pode fazer por nós a gentileza dos que nos amam, mesmo se uma das frases inesquecíveis do filme seja essa que diz: “Não há suficiente gentileza no mundo.” Afirmação verdadeira que não nos larga mais.

 

Li, estes dias, o discurso do escritor norte-americano George Saunders, numa cerimónia de entrega de diplomas da Syracuse University, e aprendi mais alguma coisa sobre a gentileza. A entrega de diplomas é um momento de exaltação do sucesso, o já obtido e o que se auspicia para uma nova etapa da vida que vai começar, e por isso soa inesperado o desafio que Saunders lança na ocasião aos estudantes que tem diante de si: “Perguntem-me em que é que eu senti que falhei.” E ele conta. Não foi na experiência da pobreza, dos fracassos, dos recomeços difíceis como uma humilhação ou até dos imbecis disparates cometidos. Aquilo que hoje reconhece como doloroso falhanço foram as oportunidades perdidas para ser gentil quando o devia. Esses momentos em que, perante um ser humano em sofrimento ou injustiçado, deu por si a reagir apenas com neutralidade e bom senso, apenas com distância, moderação e pudor.

 

Qual é o nosso problema? Por que razão não somos mais gentis? O escritor explica-o assim: porque cada um de nós se deixa capturar por uma série de equívocos congénitos. Primeiro, achamos que somos o centro do mundo e que a nossa história é a mais importante, interessante, quando não mesmo a única que conta. Segundo, porque nos vemos desligados do Universo: existimos nós e, depois, a outro nível coexiste confusamente tudo o resto. Terceiro, porque vivemos na prática como se fôssemos eternos sobre a Terra. Sabemos que a morte existe, mas para os outros, não para nós. Ora, estes equívocos levam-nos a construir a nossa existência antepondo (ou sobrepondo) as nossas necessidades às necessidades de todos os demais. Perante os estudantes que o escutavam, Saunders confessa: “Quando olho para trás, percebo que passei grande parte da vida ofuscado por coisas que me afastavam da gentileza. Coisas como a ansiedade. O medo. A insegurança. A ambição. A convicção errada de que o sucesso me libertaria de toda aquela ansiedade, medo, insegurança e ambição. A convicção de que apenas se conseguisse acumular — sucesso, dinheiro e fama suficientes — as minhas nevroses desapareceriam.” O conselho que ele dá então aos diplomados da Syracuse University serve, afinal, para nós todos: “Tratai de descobrir aquilo que vos torna mais gentis, aquilo que vos liberta e faz emergir a versão mais afetuosa, generosa e serena de vós próprios. E colocai-o em prática como se não houvesse nada mais importante.”

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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