Os nossos tempos, os tempos que nos coube viver, não deixaram ainda, à sua maneira, de ecoar aquela categoria de “tempos sombrios” que ocorre num poema célebre de Bertolt Brecht, escrito pelo poeta no exílio da Dinamarca, entre 1934 e 1938. O poema de Brecht tem a forma de uma carta aos vindouros, “àqueles que nascerão depois de nós”, pedindo-lhes indulgência no juízo que farão da geração que os precedeu, pois os dias que lhes coube viver sobre a terra foram sombrios, e numa escala incrivelmente desmesurada. O diagnóstico em que assenta o poema tem um realismo cru, mas quem pode dizer que ele, em certa medida, não continue a descrever situações que temos diante dos olhos? Claro que o poema de Brecht é datado e descreve, antes de tudo, o horror concreto que o nazismo historicamente constituiu. Mas, como toda a obra de arte, tem uma capacidade significativa mais lata. Assim, os versos que se sucedem podem também ser lidos com uma chave de interpretação do presente: desde a implacável dureza da atual crise migratória à precarização acentuada que engrossa as margens daqueles que se sentem como um descarte social; desde os conflitos intermitentes desta “terceira guerra mundial aos bocados”, como diz o Papa Francisco, ao peso cada vez maior da solidão que vem preencher os espaços deixados pelo esboroar dos laços de solidariedade. A lírica brechtiana propõe uma reflexão sobre as fragilíssimas condições da existência num tempo hostil, qualquer que ele seja, denunciando a forma como se reduz, sem apelo, a possibilidade de uma vida digna desse nome, de uma vida propriamente humana.

Sabemos, de facto, o que foi o século XX e como a sua reverberação se tem projetado neste primeiro vinténio do século XXI. O historiador inglês Eric Hobsbawm caracterizou-o como “a era das catástrofes”, pela forma sem precedentes como a destruição em massa de seres humanos foi levada a cabo e como isso empurrou as sociedades não só para o colapso social e económico, mas também para o crepúsculo dos valores e da própria esperança. A tragédia do “século breve” foi também espiritual. E por isso, Brecht refere essa espécie de impotência ou de rendição interior inevitável que doravante nos parece sujeitar a todos, e para a qual suplica o juízo indulgente do futuro. “Ah, os que quisemos/ preparar terreno para a bondade/ não pudemos ser bons”.

Mas há cinquenta anos precisamente (os grandes livros merecem ser celebrados!), a filósofa Hannah Arendt publicava uma antologia de ensaios sobre mulheres e homens que ousaram contrariar os seus tempos sombrios. Mulheres e homens que partilharam a mesma época histórica e que não se deixaram submeter ao seu fatalismo: do pensador Karl Jaspers à escritora Karen Blixen, do filósofo Walter Benjamin ao Papa João XXIII. Para título dessa antologia, Arendt foi buscar o poema de Brecht e chamou-lhe “Homens Em Tempos Sombrios”. E, no prefácio, explica que mesmo entre escombros, mesmo no tempo mais precário e escuro, não devemos remover de nós o direito de esperar. Temos de continuar a história, conspirando para que alguma iluminação chegue. E a autora sustenta que não será propriamente das teorias e dos conceitos que um clarão de sentido poderá irromper. Será sempre na forma mais concreta, através da humanidade de mulheres e homens como nós, nas suas vidas e obras, que poderemos ver pulsar melhor a luz, ainda que débil, incerta e bruxuleante, mas a luz. Em cada época há vidas, mais conhecidas ou mais anónimas, a irradiar para os seus semelhantes, tornando a tarefa de viver uma aventura acompanhada. Ganhamos muito em escutar como flui e se torna singular, fulgurante e autêntico o grande caudal da vida.

[Semanário #2392 | 01/09/18]