É urgente nutrir a vida (I)
Quando se trata de pensar aquilo que nutre a vida é tão importante fazermos o elogio da pequena história, não apenas da grande. Gosto muito da proposta que, um dia, encontrei num livro de história: "Não dar mais valor à queda de um império do que ao nascimento de uma criança, nem mais peso às ações de um rei do que a um suspiro de amor." Talvez um dia mereçamos uma história ensinada assim. Talvez um dia nos preocupemos definitivamente mais com a pessoa do que com a estrutura, com a singularidade mais do que com a afiliação. Talvez um dia uma palavra, um rosto ou um destino quaisquer, eleitos assim ao acaso, sirvam para revelar tudo: para nomear o entusiasmo e a dor, o vislumbre e o combate, a razão e o enigma que existir significou e significa. Porque a verdade é que passam os anos e o que resta deles? Vivências. Sim. Restam as marcas de que estivemos aqui, de que habitámos estações diferentes com a mesma mansidão ou o mesmo furor, de que tentámos sobreviver ao amor, ao desamparo e à morte com tudo o que tínhamos à mão, de que partilhámos, de que cremos e negámos coisas diferentes e até a mesma coisa, de que coexistimos nos nossos encontros e na nossa irredutível solidão. Restam de nós vestígios, monumentos de vário tipo, pegadas. Resta o pó e o silêncio dos ossos. Mas não só: de uma forma que não sabemos, o escasso lume que fomos perdura e serve a outros para continuar. Façamos o elogio da pequena história!
Nutrir-se de espanto
E façamo-lo, em contracorrente, nesta sociedade dominada pelo mito do controlo, onde uma ideia de vida substituiu-se à própria vida. A nossa viagem passou na nossa cultura para as mãos de um piloto, que só tem de aplicar, do modo mais maquinal que for capaz, as regras previamente estabelecidas. Os nossos sentidos adormeceram. Deixou de haver lugar para a surpresa. Vivemos condicionados por uma espécie de guião. Uma coisa, porém, tenho aprendido: é importante não condicionar o fluxo espantoso da vida e a capacidade que ela tem de nos surpreender. A nossa pequena vida é um instante em aberto. Somos chamados a cultivá-la com a paciente humildade que um jardineiro reserva ao seu jardim. O jardineiro trabalha de sol a sol, com todo o afinco, mas sabe que a rosa floresce sem ele saber como. Felizes aqueles que, em relação à vida, à pequena história se nutrem do espanto: esses, e só esses, sentirão o inacabado do tempo como uma promessa.
Como ensina Jung, “o importante não é ser perfeito, o importante é ser inteiro”. Os pequenos triunfos dão-nos fortaleza para olhar as grandes humilhações, e as dificuldades vividas dão-nos humildade para viver os triunfos. As experiências de liberdade dão-nos a capacidade e a esperança para suportar os momentos de penumbra; e os momentos em que nos sentimos aprisionados dão-nos a resistência, a força e até o sentido de humor para vivermos os tempos de liberdade. Há que afastar de nós a tentação do cinismo e aceitar, finalmente, que somos feitos destes materiais tão diversos e que tudo isso é dom, que tudo isso é o nosso nutrimento.
Estamos prontos a honrar a vida?
Olhemos para dentro de nós. Se nos escutarmos em profundidade sabemos que existem perguntas que estão desde sempre à nossa espera. Subtraí-las é subtrairmo-nos e faltarmos à chamada que a vida nos faz. Uma dessas perguntas prende-se com o desejo, e na forma mais incisiva e pessoal formula-se assim: "Qual é o meu desejo?" O meu desejo profundo, aquele que não depende de nenhuma posse ou necessidade, que não se refere a um objeto, mas ao próprio sentido. "Qual é o meu desejo?" O desejo que não coincide com as quotidianas estratégias do consumir, mas sim com o horizonte amplo do consumar, da realização de mim como pessoa única e irrepetível, da assunção do meu rosto, do meu corpo feito de exterioridade e interioridade (e ambas tão vitais), do meu silêncio, da minha linguagem. Como dizia Françoise Dolto, a nossa hora só chega "quando, como qualquer outro ser humano sentimos um desejo suficientemente forte para assumir todos os riscos do nosso próprio ser. Aí estaremos prontos a honrar a vida de que somos portadores".
O momento da aceitação de si
Olhemos para dentro de nós. A não sei quantas braças de profundidade situa-se uma dor nunca reparada, mas que condiciona toda a superfície. Identificar e cuidar dessa dor é a condição para sermos nós próprios e podermos entender também a dor que os outros transportam, tocando a nossa e a sua verdade. O momento da aceitação de si, com lacunas e vulnerabilidades, é uma etapa crítica, dilacerante até, mas abre-nos à transformação e fecundidade possíveis, abre-nos à enunciação do desejo. E, não o esqueçamos, quantas vezes a vulnerabilidade acolhida se torna a janela por onde entra a inesperada transparência da graça.