O humor do cardeal

Crónicas 28 março 2019  •  Tempo de Leitura: 4

Este ano coube ao cardeal de Boston, Sean O’Malley, a pregação do retiro quaresmal aos bispos portugueses. O conjunto das meditações acaba de ser editado num volume, com um título curioso: “Procura-se amigos e lavadores de pés” (Paulinas: 2019). E é um livro que se lê e não se esquece: antes de tudo pela certeira intensidade espiritual, mas também por um elemento, porventura, marginal e inesperado: o humor.

 

O filósofo Emil Cioran explicou-o bem quando escreveu que “as lágrimas são aquilo que nos pode tornar santos, depois de termos sido humanos”

 

Se numa sondagem for perguntado a que se deve associar o esforço de conversão, a resposta esmagadora será: ao arrependimento e à tristeza pelos erros praticados. O filósofo Emil Cioran explicou-o bem quando escreveu que “as lágrimas são aquilo que nos pode tornar santos, depois de termos sido humanos”. Ora, ninguém poderá dizer que o propósito do cardeal O’Malley seja outro que não inspirar uma genuína conversão, mas o instrumento escolhido é o humor. E tal mostra a originalidade e a sabedoria deste antigo frade capuchinho que é uma das grandes vozes espirituais do nosso tempo. Não se trata daquele humor de sacristia que se cola, como um cliché, aos eclesiásticos. Basta recordar o primeiro gag do livro para perceber a natureza do cómico que ele põe em jogo: um bispo, quando saía da sua catedral, deparava-se invariavelmente com um homem, de nome Santiago, prostrado num banco, coberto de cartões usados e jornais. O pobre tresandava a álcool, mas levantava-se, cambaleante e afetuoso, para cumprimentar o bispo. Um dia, ao atravessar a praça, o prelado não o viu e passaram-se semanas para que, com surpresa, o reencontrasse, agora descendo a rua, quase irreconhecível. Tinha a barba feita, um fato limpo, sapatos que brilhavam e uma Bíblia debaixo do braço. Perguntou-lhe o bispo, atónito: “Que te aconteceu, homem?” Respondeu Santiago: “Fui salvo.” O bispo felicitou-o e despediu-se. Um mês depois, sai o prelado da catedral e vê Santiago no banco, no velho estado deplorável. Interroga-o o bispo: “Que te aconteceu, Santiago?”, “Monsenhor, voltei para a única verdadeira Igreja.” É um humor assim que que faz implodir as nossas injunções sonâmbulas, removendo os chavões a que reduzimos tantas vezes a experiência religiosa. O humor que o cardeal Sean O’Malley emprega não é feito para ser delicioso. O seu objetivo é escancarar-nos, mostrar-nos como somos, levar-nos a renunciar à tentação gnóstica ou maniqueia que separa a ação sobrenatural da nossa realidade como ela é, com as suas rugosidades e infâmias, desmontar criticamente o discurso autojustificativo. Do ponto de vista das influências podemos colocar O’Malley — que começou a sua carreira por fazer um doutoramento em literatura portuguesa e hispânica — na peugada de importantes autores católicos, dos quais G. K. Chesterton ou a romancista Flannery O’Connor são, certamente, emblemas. Flannery dizia que “quanto mais um escritor deseja tornar manifesto o sobrenatural, mais deve tornar real o mundo natural, pois se os leitores não aceitam o mundo natural, certamente não aceitarão nenhum outro”. Mas, no caso do cardeal, acrescentaria ainda uma segunda influência: a tradição humorística do chamado risus paschalis, recuperando o antigo costume segundo o qual, na homilia do dia de Páscoa, o pregador devia literalmente divertir os fiéis, e fazê-los rir com anedotas e histórias, para que a alegria chegasse a todos. Há, de facto, um sopro pascal que atravessa a obra de Sean O’Malley. Ele insiste em que a dinâmica pascal de Cristo opera uma radical inversão no nosso modo de compreender a fé e a história, como o exprime aquele pequeno diálogo místico: Certo homem perguntou: “Cometi muitos pecados. Se me arrepender, Deus perdoar-me-á?”; O místico respondeu-lhe: “Não. Tu arrepender-te-ás, se Ele te perdoar.”

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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