«Viste já o leopardo-das-neves?», por Tolentino Mendonça
Conta-se que um mestre interrogou, certo dia, um dos seus discípulos: “Viste já o leopardo-das-neves?” “Confesso que há muito que o espero, mas não o avistei ainda”, respondeu o discípulo. “E isso não é maravilhoso?”, concluiu o mestre.
Há, de facto, uma beleza nas esperas que se cumprem. Para isso nos acreditamos criados. Para aí se orienta, desde sempre, o nosso caminho: sentimos que existimos para conseguir e alcançar, para conquistar e obter, para ver e tocar. Esse é certamente um dos motores mais poderosos da nossa busca interna e é, ao mesmo tempo, o que melhor parece cumprir a expectativa dos outros a nosso respeito. Aquilo que se celebra são as realizações, pequenas e grandes. Aquilo que se recorda são as chegadas à meta. O que nos mobiliza é a ânsia de vencer, superar, transcender cada desafio, pois daí (e só daí) nos disseram que se extrai a confiança necessária para ser. Ora, não é que isso não esteja correto e não corresponda a uma verdade que temos de nos empenhar a conjugar no aqui e no agora da nossa singularidade. Existe, porém, um problema irremovível: é que essa experiência corresponde apenas a uma parte do grande quinhão de possibilidades que nos cabe viver. E se, para a primeira experiência, tudo nos prepara, e chegámos a ela sustentados pela presença, confirmação e aplauso dos outros, para a experiência oposta estamos existencialmente impreparados, entramos nela em contraciclo, interpretamo-la como um falhanço que nos desqualifica. Para a experiência oposta (para essa que, na verdade, deveríamos encarar como complementar) escasseiam instrumentos, falta-nos saber adquirido e educação que nos ajude a integrá-la e a retirar também dela algo que é necessário e precioso à maturação da vida, na sua acumulação descontínua de começos e recomeços. Claro que nos sobrevém um sentimento feliz quando tudo parece coincidir ou exceder aquilo que havíamos sonhado. Mas não será, igualmente, uma razão de felicidade que a vida nos tenha surpreendido, nos tenha dado não isto mas aquilo, nos tenha guiado por histórias e caminhos que não poderíamos sequer supor? Claro que é esplêndido encontrar. Contudo, se não tivermos arriscado viver de olhos abertos o falhanço, a perda e o esvaziamento como hipóteses de sabedoria que a vida nos dá, saberemos realmente o significado do encontro?
Se não tivermos arriscado viver de olhos abertos o falhanço, a perda e o esvaziamento como hipóteses de sabedoria que a vida nos dá, saberemos realmente o significado do encontro?
Recordo aquilo que o místico São João da Cruz escreveu no livro “Subida ao Monte Carmelo”, onde trata do que se deve fazer para alcançar a união divina. A sua proposta é que aprendamos a desembaraçar-nos da glória, do gozo, do saber, da consolação e do descanso, pois o caminho da perfeição é composto apenas por uma desassossegada palavra, que cada vez somos chamados a repetir com mais exigente (e luminosa) radicalidade. Essa palavra é: nada. Talvez tenhamos de ler de maneira diferente os controversos mestres da modernidade, e onde vimos anteriormente uma obstinada declaração de pessimismo e cansaço face ao destino humano reencontremos, antes, o eco de uma outra via, de uma silenciada e esperançosa via, com a qual nos precisamos reconciliar. É disso que nos fala, por exemplo, Fernando Pessoa, no arranque da “Tabacaria”: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.” É a isso que alude o mote do escrivão Bartleby: “I would prefer not do.” Ou a deliciosa história que se conta de Samuel Beckett, passeando por Paris, numa manhã perfeita de primavera. Um amigo diz-lhe: “Um dia como este não te transmite a alegria por estar vivo?” E ele, lúcido, soturno e desamparado, responde: “Não diria tanto.”
[©SEMANÁRIO#2423 - 6/4/19]