«Faço selfies, logo existo», por Tolentino Mendonça
Num texto premonitório, o escritor Paul Valéry vaticinou, em 1928, que do mesmo modo como a água ou o gás das canalizações chegam, sem um esforço direto nosso, às nossas casas, assim viria o dia em que nos alimentaríamos de imagens, que nasceriam e se extinguiriam automaticamente.
Esse dia chegou, e é servido em doses sobreabundantes, uma torrente que nenhuma torneira é capaz de controlar. Fotografar tornou-se um ato espontâneo, uma forma rápida de comunicação, uma expressão banal e engraçada das nossas sociabilidades.
Um texto da psicanalista Elsa Godart, “Faço selfies, logo existo”, mostra bem o que está em jogo, de forma declarada ou latente, numa tal inundação de imagens que diariamente nos submerge.
Trata-se de um desesperado desejo de ser, ainda que não saibamos o quê; a vontade compulsiva de partilhar que estivemos ali, naquele momento, naquela situação e naquele lugar, sobrepondo o nosso exibicionismo a qualquer outra partilha de razões e ou de sentido.
Recebemos e transmitimos imagens que se considera que aumentam, colocadas na redem a realidade. A verdade é que o seu resultado, na maior parte dos casos, redunda num imenso empobrecimento comunicativo.
Quando reduzimos o mundo a uma acumulação de imagens simplificadoras, as imagens simplificadoras substituem-se à complexidade do mundo.
[D. José Tolentino Mendonça | In Avvenire]