O tempo, maldito e bendito

Crónicas 10 junho 2017  •  Tempo de Leitura: 4

Domingo passado, no Estádio Olímpico de Roma, apagou-se um símbolo. Há 25 anos ao serviço do Roma, o capitão Totti despediu-se das lides do futebol num discurso inesquecível, literalmente batido por um mar de lágrimas. Mas não, não é o futebol que é assim, capaz de tornar torrenciais as zonas mais áridas da existência. Temos de dizer que é a vida que é assim. Domingo passado, colados às palavras de Totti no estádio, ou a quilómetros dali, onde quer que elas fossem conhecidas, todos nós éramos romanisti, claro, mas não, não apenas isso. Éramos sobretudo humanos. Pois foi disso que Totti escolheu falar, dessa coisa que somos e se desfaz quando o tempo avança. “Chegou o momento que desejei que nunca chegasse... Há dias que dou por mim chorando sozinho como um tonto... A um certo ponto da vida tornamo-nos crescidos. Maldito tempo. Veio tocar-me nas costas dizendo-me: ‘Temos de crescer, deixa os calções e botas, és um homem’.” Um futebolista pode falar como um profeta bíblico. “Contava morrer primeiro”, dizia um cartaz de homenagem ao jogador, traduzindo a perplexidade em que aquele entardecer se afundava. Contudo, o tempo quer-nos de pé, quer-nos bem vivos quando, diante do nosso rosto inocente, exibe impávido o seu poder sobre a vida. A vida transparente e incognoscível, inesperada e frágil, tateando a sombra das suas próprias perguntas. Maldito ou bendito tempo?

 

Ando às voltas com o livro mais recente de Carlo Rovelli, o físico que, há anos, escreveu o aclamado “Sete breves lições de física” (2014) e que publicou agora “A ordem do tempo” (Adelphi, 2017). A tese dele é esta: tudo o que sabemos do tempo tem-se sucessivamente revelado falso. Pensamos nele como uma evidência que corre uniforme do passado para o futuro, indiferente a tudo, uma contagem que os nossos relógios são capazes de assinalar. Mas, como diz Rovelli, a verdadeira natureza do tempo permanece o enigma maior. Sabemos pouco da relação completa entre aquilo que vemos do mundo e o próprio mundo. O nosso olhar é míope. As nossas lentes desfocadas. E, no entanto, sentimos que “estranhos fios ligam o tempo a alguns outros grandes mistérios em aberto: a natureza da mente, o destino dos buracos negros, o funcionamento da vida”. Sentimos que algo de essencial continua a reportar à natureza do tempo. Essa natureza de que ignoramos quase tudo.

 

O físico que dirige o centro de pesquisa da Universidade de Aix-Marseille adianta uma coisa curiosa: não chegaremos a desvendar o enigma do tempo se não compreendermos primeiro o que significa a nossa condição de seres no tempo. E aí, opina ele, a investigação levada a cabo por físicos e cientistas precisa de ser enriquecida por conceitos filosóficos, por categorias típicas da narrativa e da poesia, por intuições da própria existência no seu devir. A melhor chave para o enigma do tempo continuamos a ser nós, tragicamente feitos de tempo. Rovelli recomenda, por exemplo, que se volte a Santo Agostinho: “Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem me indaga, já não sei.” Ou propõe que perscrutemos os confins do tempo revelados por um mestre como Proust, cujas personagens explicam como, num único instante, a consciência pode mergulhar em profundidades insondáveis. Ora, se isto acontece a evocar o sabor de uma vulgar madalena, não há de acontecer na despedida de um herói perante um estádio inteiro?

 

[©Revista Expresso | 2327, 03 de junho de 2017]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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