A pergunta decisiva, por Tolentino Mendonça

Crónicas 4 maio 2020  •  Tempo de Leitura: 5

O devastador impacto da covid-19 sobre as nossas sociedades tem sido colhido, tanto por peritos como na perceção popular, como uma catástrofe e um trauma. São palavras com um sentido preciso sobre o qual convém refletir. Uma catástrofe ocorre quando a maior parte ou a totalidade de uma comunidade é fortemente condicionada por uma disrupção inesperada: as rotinas ficam inviabilizadas, o conjunto da estrutura social estremece e a comunidade não consegue, com os recursos próprios, fazer frente às gravíssimas necessidades que emergem. Quanto ao trauma, pode ser útil recordar o que dizia Freud: um trauma é uma agressão que, por ser imprevisível, nos encontra sem defesas, e traz por arrasto a implosão violenta da nossa representação ordinária do mundo, confinando-nos a um incapacitante estado de angústia. A frequência com que os termos catástrofe e trauma aparecem citados testemunha como o grau de sofrimento coletivo cresceu. E, infelizmente, continuará a crescer, pois os danos provocados alteram a fisionomia da nossa existência comum. Porém, muitos se começam a interrogar, com razão, sobre como será o pós-covid-19.

 

Precisamos de resiliência para que, uma vez feridos, isso não nos retire completamente a confiança na vida, nem obstaculize para sempre a alegria de que somos herdeiros

 

Nas ciências humanas, há dois axiomas esperançosos para o tempo de reconstrução que se reabrirá. O primeiro é o “axioma de Quarantelli”. Enrico Quarantelli (1924-2017) foi um importante sociólogo norte-americano, que se especializou no estudo de reação aos desastres. As suas conclusões sublinham que as catástrofes geram mais cooperação que conflito, avizinham as pessoas como nunca, democratizam a vida social e fortalecem a identidade comum. Há novas organizações (ad hoc ou mais estáveis) que se criam, reforçando a coesão da sociedade para uma resposta concreta e eticamente qualificada. O segundo é o “axioma de Cyrulnik”. Boris Cyrulnik é um neuropsiquiatra francês, de origem judaica, que viu os pais morrer em Auschwitz, e tem hoje uns belos 82 anos. A sua tese sobre o trauma é que ele, se não é certamente reversível, pode ser, no entanto, reparável. Tal implica não pretender regressar ao estado precedente, mas pacientemente passar para uma etapa nova. A ferramenta que Cyrulnik propõe é a resiliência, uma categoria que ele recupera da Física. Trata-se ali da capacidade de um metal resistir a choques sem se despedaçar. Também nós humanos precisamos de resiliência para que, uma vez feridos, isso não nos retire completamente a confiança na vida, nem obstaculize para sempre a alegria de que somos herdeiros.

 

Foi estes dias publicada, em Itália, a primeira sondagem sobre a espiritualidade em tempos de pandemia. Um primeiro dado verificável é que não aconteceu uma deserção dos crentes, que continuam nos 70%, nem os não crentes alteraram substancialmente o seu posicionamento, mantendo-se os 27% da população. Mas há uma curiosa pontuação em duas afirmações: naquela que defende que este é um tempo propício para sermos mais humanos e solidários; e naquela que afirma que a atual situação provoca, com maior intensidade, a que nos coloquemos a questão sobre o sentido da vida. Os axiomas de Quarantelli e de Cyrulnik são ajudas importantes no imediato, mas ainda têm a ver com as realidades penúltimas. A busca do sentido da vida pede, porém, que levemos o coração até àquela última. E essa é que representa para todo o ser humano a pergunta decisiva.

 

Os cristãos, em cada Páscoa, é isso que fazem: expõem-se à radical pergunta pelo sentido das suas vidas e da vida do mundo. E, no anúncio que as mulheres vêm fazer aos discípulos, de que o sepulcro de Jesus está vazio, tateiam uma verdade definitiva que resgata a vida e a morte. Pois, como explicou São João no Livro do Apocalipse (21:4-5), as coisas como eram anteriormente passaram: em Cristo Ressuscitado, Deus faz novas todas as coisas.

 

RevistaExpresso]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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