O desejo de uma bênção, por Tolentino Mendonça

Crónicas 19 setembro 2020  •  Tempo de Leitura: 5

Quando Ezra Pound se pôs a explicar o que pretendia Dante na “Divina Comédia” — com aquele longuíssimo peregrinar entre inferno, purgatório e paraíso — foi muito claro. Para ele, Dante fala de “Everyman”, de cada um de nós, pois a vida não é uma confortável linha reta, mas essa trajetória através do emaranhado “árduo e silvestre” do tempo, que se vai tornando sempre mais ferido de fragilidade. Como conta Dante, “a vida se fez penosa”, “a alma se tornou pesada” e, como fomos aí parar, “dizer não sabemos”. Por isso, o meio da vida é também muitas vezes a hora do grito. “Quando eu já para o vale decaído/ tombava, à minha frente um vulto incerto/ que por longo silêncio emudecido/ parecia, irrompeu no grão deserto:/ ‘Tem piedade de mim’, gritei-lhe então.” Há um momento em que sentimos como um imperativo essa necessidade extrema de consolação e de socorro. Essa pode ser expressa de várias maneiras, é certo. Maneiras tão díspares que se diria não terem nada em comum. Mas não é assim: o nosso coração humano, de uma forma ou de outra, anda em busca do mesmo. Tem o desejo de uma bênção.

 

A bênção acorda nas profundezas do coração a certeza de que somos amados e essa certeza estende uma ponte de corda entre abismos

 

Esta semana subi ao Monte La Verna, que Dante descreve como um “cru rochedo entre o Tibre e o Arno”, e que serviu a Francisco de Assis como refúgio de solidão para viver o seu ardente desejo de Deus. Foi nesse lugar, numa estadia que começou no mês de agosto de 1224, que São Francisco recebeu o sigilo místico dos estigmas. Infelizmente, esta subida, fi-la de carro, porque gostaria tanto de ter subido a pé, com os peregrinos que via em pequenos grupos pela estrada e que se davam a si próprios o tempo necessário para sentir dentro de si o impacto daquele caminho. Não tenho dúvidas de que a lentidão e a dor da escalada os preparava para um dos tesouros que o Monte La Verna guarda: a história da bênção que Francisco de Assis concedeu ali ao seu companheiro Frei Leão. Frei Leão foi praticamente o secretário, o confidente e o confessor de São Francisco. Não por acaso, as sua sepultura está colocada ao lado da do Poverello, em Assis. Francisco chamava a este Leão, com algum humor, “a ovelha de Deus”. Era um homem bom, simples e de coração puro. E grande era a estima que Francisco lhe dedicava. Uma prova disso está no verso da folha onde se conserva uma das mais importantes composições poéticas de São Francisco, “Louvores a Deus Altíssimo”. No verso, Francisco gravou uma bênção a Frei Leão para fortalecê-lo num momento de provação que este viveu sobre o Monte La Verna: “O Senhor te abençoe e te guarde. Mostre-te a sua face e tenha de ti misericórdia. Dirija para ti o seu olhar, e te dê a paz. O Senhor te abençoe, irmão Leão. Te abençoe, te abençoe, te abençoe o Senhor, e te guarde irmão Leão.”

 

A bênção acorda nas profundezas do coração a certeza de que somos amados e essa certeza estende uma ponte de corda entre abismos. A bênção acompanha-nos ao longo da viagem como um bordão. A bênção atesta que a nossa necessidade de sentido e de consolação não são impossíveis de satisfazer. Tenho um amigo que muitas vezes repete este resumo de bênçãos que ele encontrou: “Possa o caminho crescer contigo/ possa o vento ser as tuas asas/ possa o sol iluminar o teu rosto/ possa Deus ter-te na palma das suas mãos.// Dá-te tempo para amar,/ porque isso é o privilégio que Deus nos oferece.// Dá-te tempo para ser amável/ porque essa é a via da felicidade.// Dá-te tempo para sorrir/ porque o sorriso é a música da alma.// Dá-te tempo para a ternura/ porque a vida é demasiado curta para o tolo egoísmo.”

 

[SEMANÁRIO#2496 - 29/8/20]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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