Ramadão
Do primeiro jantar que tive com o poeta italiano Tonino Guerra, que era comunista e laico como não se cansava de dizer, retenho de forma nítida sobretudo uma imagem. Era uma das formas de comunicação que Tonino Guerra mais amava, e que cumpria, ao mesmo tempo, como um pacto e como um repto: passar aos seus interlocutores uma imagem. Uns com os outros, trocámos mais frequentemente relatos ou vivências, cruzámos argumentos, testámos interpretações para a realidade. Mas isso, francamente, não o mobilizava. Sem pré-avisos e fugindo a explicações, ele preferia deixar-nos com uma imagem, e se enigmática tanto melhor. Uma imagem que se despegasse muito lentamente não apenas dentro da nossa inteligência, mas no fundo da nossa alma. A que ele me ofereceu foi esta: “Imagina tu, que andava com Antonioni a percorrer de carro a Geórgia. E demos por nós no meio de nada, numa paisagem marcada pela desolação e pelo sol. De repente, apercebemo-nos que havia ali um homem, que nem nos olhou. Acompanhámo-lo a desdobrar um tapete e a prostrar-se numa oração silenciosa, voltado para Meca.” Foi esta a imagem. Depois o jantar continuou, com uma vivacidade e uma alegria que não sei descrever, mas que era testemunhada pelos olhos dos 28 gatos que Tonino tinha circulando por ali.
Agora compreendo que essa imagem que ele me ofereceu levou séculos a descolar a sua significação dentro de mim, mas finalmente chegou o seu dia, de forma inesperada e grata. Este mês de junho fiz, com um grupo de amigos cristãos, uma peregrinação à Terra Santa. Naquela “sublime ironia de Deus”, de que falava Jorge Luis Borges, fomos auxiliados por dois condutores adequadíssimos: um guia judeu com uma formação sionista e laica estrita, para quem a religião nem chega sequer a ser uma pergunta (claro, que depois, não era completamente assim, mas avante) e por um motorista muçulmano crente. No meio das temperaturas elevadas desta época, que nas zonas do deserto, por exemplo, subia pelos quarenta e muitos graus acima, o sorriso paciente do motorista muçulmano conduziu o autocarro por jornadas abrasivas como se nos encaminhasse por um tranquilo riacho. Sempre que saíamos do autocarro para uma das visitas locais, retirávamos uma garrafa de água do frigorífico que ele geria. Mas este homem estava a viver o Ramadão enquanto nos prestava esse serviço, e comia e bebia alguma coisa somente antes da alvorada ou depois do pôr do sol. Era, por isso, para nós impossível sentir o consolo da água fresca, sem pensar na sede que o devorava. Os católicos jejuam duas vezes por ano, e, mesmo assim, hoje é difícil encontrar comunidades que o observam integralmente. A piedade daquele crente, dia após dia, ao longo de um interminável mês era qualquer coisa que calava fundo. Quando uma vez lhe perguntei como estava a decorrer o Ramadão, e se não era difícil, ele respondeu: “O jejum ensina-me a ser paciente.”
É fácil olhar para o Ramadão, com os nossos olhos ocidentais e secularizados, como um apontamento exótico ou uma intransigência religiosa opaca e bizarra, que nada tem a ver connosco. E é pena. Não compreendermos a riqueza espiritual que representa uma comunidade inteira, de milhões de seres humanos, unida por um rito de privação e esvaziamento, que existencialmente os renova, mostra bem como a ditadura do consumo nos aprisiona na feira de diversões em que as nossas sociedades se tornaram. Naquela metáfora que Kierkegaard criou, e que nos serve de espelho, o navio foi tomado de assalto pelo cozinheiro de bordo, e as palavras que se ouvem já não dizem nada sobre a rota, mas anunciam apenas o cardápio disponível.
[©Revista Expresso | 2331, 01 de julho de 2017]