PAIS OU AMIGOS DOS FILHOS?
Cada vez mais se ouve pais hesitantes do seu papel que perguntam se a tarefa que lhes cabe é a de serem pais para os seus filhos ou simplesmente grandes amigos. Tornarem-se amigos dos filhos, vencendo a distância simbólica que a parentalidade estabelece, aparece hoje a mães e a pais como uma solução tentadora que os colocaria melhor na órbita existencial dos filhos, cúmplices das etapas que estes percorrem, confidentes privilegiados das suas vivências e, desse modo, com maior capacidade de influenciar e de intervir. Será verdade? É curiosa a resposta que dá o psicanalista italiano Massimo Recalcati, recuperando duas histórias fundadoras da relação pais-filhos no imaginário ocidental: o mito de Édipo e a parábola evangélica do filho pródigo. No enredo do mito, o jovem Édipo avança, de equívoco em equívoco, até fundir-se tragicamente com as figuras dos pais (seja no homicídio, seja no incesto). É uma sirene de alerta que soa. Se algum ensinamento se colhe dali é a necessidade de construir uma relação estável e diferenciada entre gerações, onde a alteridade não venha anulada, pois de outro modo o caos precipita-nos rapidamente na infelicidade mais confusa.
Os pais precisam aceitar que cada filho é uma vida distinta e autónoma, ao mesmo tempo gerada por eles e inacessível, à maneira de um segredo que protegem mas cujo conteúdo está destinado a escapar-lhes. Recalcati defende que a missão principal dos pais é “confiar neste segredo incompreensível dos filhos”, e que isso se realiza não tanto na base do eixo horizontal da empatia ou no uso trivializado do diálogo quanto no testemunho infatigável de uma fé no filho enquanto representação do outro. Na parábola evangélica do filho pródigo, que pede ao pai a porção da herança para partir para longe e que depois regressa à casa paterna na indigência, de forma completamente inglória, emerge um modelo interessante de relação familiar. Por um lado, temos o filho: alimenta uma saudável vontade de autonomia, mesmo se não está preparado para ela. Contudo, a impreparação é vencida pela urgência vital de correr esse risco. Do outro lado, surge o pai. Um detalhe que chama a atenção na história bíblica é o facto de este pai não fazer perguntas, correspondendo ao pedido extemporâneo daquele filho que migra para longe. Como pai, toma a sério a exigência de liberdade experimentada pelo filho e deixa-o partir. Porém, isentando-se de comentários, não se torna um facilitador. Recolhe-se ao seu espaço e renuncia a transformar-se em amigo ou estratego da viagem iniciática do filho. O pai permanece pai.
A tarefa da vida dos filhos é fazerem-se criativos herdeiros de um dom recebido que também eles não entendem até ao fim ou não entendem logo. Ora, ser herdeiro não significa apenas receber a parte de bens que lhe corresponde, mas construir em diálogo com essa vida recebida uma identidade original. Por isso, o autor italiano escreve que “o bom filho é um herdeiro, mas também um herético”, na medida em que não se restringe a ser uma repetição, mas empenha-se na discussão, na negação e na atualização inovadora de um património existencial comum. O filho precisa de ter um pai e de superá-lo, de ter uma lei e de contestá-la, pois assim constrói e matura a sua personalidade. Mas uma função inalienável dos pais é recordar que a vida humana é fundada em limites e sinalizá-los. Precisamente o contrário da promessa consumista das nossas sociedades, onde tudo aparece pronto para ser adquirido, devorado e esquecido.
(A Paulinas Editora acaba de introduzir Massimo Recalcati junto do público português com um pequeno volume intitulado “A Força do Desejo”. Esperemos que não se fique por aqui.)
[©Revista Expresso | 2326, 27 de maio de 2017]