O verbo REPETIR
As crianças são, em tantos aspetos, inesperados mestres. Um testemunho disso está no modo como conjugam o verbo repetir. A repetição parece nelas um estado radioso, de felicidade pura, que assoma aos nossos olhos perplexos como um opaco enigma. As crianças ouvem uma história e querem ouvi-la, em seguida, mais dez, mais duzentas vezes. Escutam uma canção e pedem imediatamente: “Outra vez.” Desarmam-nos, assim. Como se o verbo repetir nos escondesse qualquer coisa que desconhecemos. Pela nossa parte — diga-se —, não é que não associemos a felicidade à suposição ou à promessa de uma duração que, como se sabe, se constrói por uma série ininterrupta, mesmo se complexificada, de repetições. Por exemplo, se os verbos que moldam a arquitetura da vida não tivessem, mesmo que de forma implícita ou até ficcional, um aceno à sua permanência no tempo (e, logo, à sua repetição), perderíamos completamente a confiança neles. O filósofo Jean-Luc Marion refere, a esse nível, o caso do amor. Qualquer afirmação sobre o amor necessita, para ser minimamente verosímil, de um horizonte onde a continuidade possa existir. Não posso declarar “eu gosto de ti por quinze minutos” ou “amo-te durante uma semana”. Mesmo que se trate apenas de tal equívoco, e o sentimento em causa seja apenas a ilusão do amor, a sua manifestação tornar-se-ia incompreensível se eliminasse, à partida, o horizonte da repetição. Por isso, ainda que a pura repetição tenha deixado de ativar imediatamente em nós a felicidade que vemos no mundo das crianças, e o seu exercício instantâneo não deflagre aquela espécie voraz de alegria que, em miúdos, experimentámos, o verbo repetir permanecerá, estrada fora, um verbo indispensável.
Porém, também atravessamos a vida em conflito com ele. Sentimos que a repetição despersonaliza, torna os gestos maquinais como se não nos pertencessem, põe-nos a viver em piloto automático, sequestra-nos nos “deixa andar”, rotiniza os dias que se ligam sonambulamente uns aos outros, como se dispensassem a surpresa irrepetível de cada aurora. Repetir torna-se uma película que nos protege, mas também o obstáculo que impede que um ar renovado circule. O dilema instala-se. E há um momento em que compreendemos perfeitamente que a repetição é um veneno doce que nos amolece, quando o essencial das nossas convicções pede o contrário: o risco e a paixão da autenticidade, uma capacidade de transformação, a competência para habitar os sucessivos começos que nos são dados, quando não exigidos.
Há um fragmento antigo de um texto de Heraclito em que vale a pena pensar: “Entramos e não entramos no mesmo rio; somos e não somos.” Talvez seja mais exato do que o famoso, e que trazemos mais no ouvido: “Ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio.” O verbo repetir não pode evidentemente ser o retorno mimético ao que já foi, como se a vida pudesse ser fixada numa imagem estática. Mas, por outro lado, o rio que flui, e se faz outro a cada instante, não deixa de ser o mesmo rio. E, do mesmo modo, nós próprios. Habitamos continuamente essa fronteira que se pode descrever assim: já não somos os mesmos e seremos sempre o que um dia fomos, o que agora somos, o que depois seremos. Não somos e somos. Por isso, a passagem do tempo desafia-nos mais à confiança e ao entusiasmo da descoberta, do que ao medo e ao ressentimento por ele não ter ficado parado algures. Temos muito que aprender sobre o verbo repetir. Ele esvazia-nos e enche-nos porque a sua música vem de dentro, como as dos delicados instrumentos de sopro.
[©Revista Expresso | 2334, 22 de julho de 2017]