O verbo FOTOGRAFAR
Talvez a saturação sem precedentes em que o mundo contemporâneo mergulhou, no que diz respeito à recolha e divulgação de imagens, nos tenha, paradoxalmente, tornado mais distantes do verbo fotografar. Repetindo obsessivamente gestos que se diriam os mesmos de um fotógrafo e obtendo, em contínuo, imagens que ainda chamamos, à falta de outro nome, fotografias, poderíamos pensar que a nossa época assiste ao triunfo do homo photograficus. Fotografar tornou-se um ato espontâneo, uma forma acelerada de comunicação, uma expressão inconsequente e divertida das nossas sociabilidades. Nesse sentido, deve reler-se o texto profético de Paul Valéry, escrito em 1928, com um título, porém, não isento de ironia, “A conquista da ubiquidade”. Valéry vaticina que, tal como a água ou o gás da companhia chegam, sem esforço para nós, às nossas casas, chegará o dia em que nos alimentaremos de imagens, que nascerão e se apagarão automaticamente. Esse dia já chegou e vem servido em doses sobreabundantes, num caudal que nenhuma torneira é capaz de controlar. Um texto recente da psicanalista Elsa Godart, “Faço selfies, logo existo”, mostra bem o que está em jogo, de forma declarada ou latente, nesta enxurrada de imagens que quotidianamente nos submerge: um desesperado desejo de ser, mesmo que não saibamos o quê; uma compulsiva vontade de partilhar que estivemos ali, naquela situação e naquele lugar, sobrepondo-se esse exibicionismo a qualquer outra partilha de razões ou de sentido. Recebemos e emitimos imagens que pretensamente ampliam, em rede, a realidade. Mas a verdade é que o seu resultado, na maior parte das vezes, redunda num imenso empobrecimento comunicativo. Quando reduzimos o mundo a uma acumulação de imagens simplificadoras, as imagens simplificadoras substituem-se ao mundo.
Talvez, também por isso, nos tenhamos distanciado do verbo fotografar e não falte quem classifique a nossa era como a da pós-fotografia. Mas naqueles que ativam este verbo com autenticidade encontramos um apelo que vai na direção contrária do imediatismo e da exposição: fotografar é, e de forma radical, uma viagem interior; um ensaio contra a cegueira dos modos rotineiros do ver; uma tomada de consciência da vulnerabilidade do olhar e do que é olhado; uma ética (e, consequentemente, uma estética, um modo de vida, uma solidão, um amor, um destino). Apaixona-me, por isso, a história de Vivian Maier (1926-2009). O seu primeiro trabalho é, em Nova Iorque, ao balcão de uma loja de doces. Transfere-se depois para Chicago, e passa a ser ama na casa de uma família de North Side. Nunca se casou. Aprendeu inglês indo ao cinema e ao teatro. Andava sozinha. No dia de folga pegava na sua Rolleiflex de médio formato e ia fotografar. Calcula-se que tenha feito perto de cem mil fotografias, num preto e branco rigoroso, que não mostrou nunca a ninguém. Fotografou a rua: os moradores dos bairros, as crianças brincando, os bêbados, as senhoras coquetes, os homens das mudanças, as marchas, as manifestações, os pequenos enredos de esquina, os chanfrados, o alarde das montras ou a confidência sempre diferente que um olhar, ao mesmo tempo, reserva para si e escancara. No mês anual de folga, acontecia fazer uma viagem, mantendo a mesma preocupação de registar fotograficamente a rua. Quando morreu, os seus anónimos pertences foram vendidos em leilão, sem que se fizesse ideia de que se estava a entregar, por um escasso punhado de dólares, a preciosa obra de uma das grandes criadoras do século XX.
[©Revista Expresso | 2336, 05 de agosto de 2017]