O verbo MILAGRAR
Qual é o ser que de manhã se move com quatro patas, com duas a meio do dia e três ao entardecer?” — é o estranho enigma que a esfinge propõe a Édipo, mas do qual ele sai vitorioso quando responde que se trata do ser humano. De facto, em criança o homem gatinha, em adulto anda com as duas pernas, e na avançada idade recorre ao apoio de uma bengala. Cada um destes modos de caminhar supõe grandes aprendizagens, sofrimentos e transformações. Mas a infância e a vida adulta são vastos países que habitamos quase sem dar por isso, mesmo quando enfrentamos muito. Claro que há combates inúmeros, dores de parto vividas em primeira pessoa, múltiplos desaires, mas essas são fases de crescimento e de afirmação, olhadas consensualmente em chave positiva. Experimentamos também aí enormes solidões, mas ainda como um desajuste externo e não como luta desamparada connosco próprios, expandindo-se no centro do nosso corpo e colocando todas as forças em debandada. As nossas sociedades, que dogmatizam a produtividade como única moeda de valor, destratam a velhice, sem compreender nem acompanhar essa estação da vida, deixada assim ao abandono.
Há um provérbio norte-americano que diz: “Ser velho não é divertido”. É uma verdade. Ser velho é ter de começar do zero a qualquer momento, e fazê-lo muitas vezes, constrangido a reaprender coisas básicas que inclusive se ensinaram aos outros a vida toda. Coisas simples (e inacreditavelmente complexas) como andar, organizar o seu espaço, cuidar da alimentação, sair de casa, comunicar. Um dia acorda-se e nada disso é óbvio como antes era. Ser velho é fazer o que se fazia, mas muito mais devagar, segmentando por etapas as tarefas, doseando o esforço desmesurado que atividades mínimas agora obrigam. Ser velho é desistir muitas vezes, tombando de uma angústia que as palavras já não exprimem; é as lágrimas correrem dos olhos, não por pieguice, mas porque nenhuma esperança as sustém; e, ao mesmo tempo, ter a teimosia inexplicável de recomeçar quando já não parece possível. Ser velho é, no extremo da fragilidade, mostrar que se tem sete vidas. Ser velho é aceitar o presente, sentindo rondar a imprevisibilidade muito perto, e sabiamente rir-se disso. Ser velho é fazer mais com menos: saber que só se pode contar com a força de uma das mãos ou com o apoio de um dos lados, e mesmo assim insistir e continuar. Ser velho é compreender o valor das migalhas, que foram sempre o nosso grande alimento sem que nos déssemos conta. Ser velho é lutar para estabelecer uma conversa com um quinto do vocabulário, ainda assim entrecortada por hesitações e esquecimentos, mas com os olhos a falarem cinquenta vezes mais, para quem os souber ouvir. Ser velho é sentir-se transferido para o interior de uma casa alheia e grande, desejando unicamente não se perder. Ser velho é não poder contar com ninguém a certas horas — horas longas que parecem não ter fim — procurando manter vivo, dentro dessa total incerteza, o inapagável fio do amor.
Sim, o provérbio tem razão. Mas há uma coisa que ele não diz: que ser velho é também um milagre. Na verdade, torna-se urgente vulgarizar um verbo que os dicionários ainda não trazem e que os velhos conjugam continuamente, o verbo milagrar. Explica-o assim o poeta brasileiro Manoel de Barros: “Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:/ quando cheias de areia de formiga e musgo — elas/ podem um dia milagrar de flores.” Os velhos milagram. Eles são responsáveis pelo incessante prodígio que é a vida.