Padre Henrique Noronha Galvão

Crónicas 9 novembro 2017  •  Tempo de Leitura: 4

A história está cheia de surpresas assim. O momento dramático em que uma geração de católicos de primeira linha se declara “vencida”, e ensaia uma dissidência do espaço eclesial, servirá inesperadamente a um jovem padre português para construir um percurso de invulgar consistência no interior da teologia. A pergunta pertinente é esta: pode, ao mesmo tempo, e sem atraiçoar nenhum dos campos, ser-se um leitor atento de António Alçada Baptista ou João Bénard da Costa e ser um discípulo fidelíssimo de Joseph Ratzinger? Henrique Noronha Galvão mostra que sim, quando no final dos anos 60 é enviado pelo cardeal Cerejeira para finalizar os estudos na Alemanha, e desembarca na Universidade de Regensburg com uma questão precisa: “o conhecimento existencial de Deus”, onde existencial se deve ler como o caminho pessoal e subjetivo e não propriamente como a realidade objetiva da existência. O célebre volume de “O Tempo e o Modo” sobre o problema de Deus, a que Alçada e Bénard da Costa se ligaram, foi interpretado de forma muito diferenciada: há quem se tenha reconhecido naquele manifesto que colocava a nu a insolúvel incerteza do crer; há quem se escandalizasse por constatar que a crise de pertença que assolava uma geração qualificada de católicos atingia assim clamorosamente a própria fé em Deus; e há outros, como Henrique Noronha Galvão, que em vez de instituírem uma lógica de barricada, ousaram pensar, numa escola de teologia de referência, o impacto profundo desse debate. O que o jovem teólogo sentiu como missão foi entender o que a fé significava, ou poderia significar, na vida concreta de alguém. As palavras de Alçada Baptista martelavam-lhe na cabeça: “O conhecimento de Deus é um conhecimento vivido como o é todo o conhecimento de amor e de sofrimento.”

 

Foi então que um amigo alemão lhe falou da obra notável de um professor de Tubinga intitulada “Introdução ao Cristianismo” e que é certamente um dos textos emblemáticos da teologia contemporânea. O professor chamava-se Joseph Ratzinger. A leitura desse livro convenceu-o: não só abordava com vertiginosa clareza as questões que o preocupavam, como manifestava uma rara abertura a outras culturas, que não apenas à germânica, citando Dante, Camus, Gabriel Marcel, etc. No primeiro encontro que tiveram ficou logo combinado duas coisas: Ratzinger aceitava ser orientador de tese de Galvão e este trabalharia o tópico do conhecimento de Deus nesse existencialista abissal que foi Agostinho de Hipona. O método a seguir é também curioso: a metodologia da semântica estrutural da escola de Paris, com Greimas e Roland Barthes à cabeça, combinada com a hermenêutica alemã protagonizada por Heidegger e Gadamer.

 

Henrique Noronha Galvão doutora-se com distinção e vem trabalhar para a Faculdade de Teologia da Universidade Católica, onde foi durante anos um elemento fundamental nas áreas de “Mistério de Deus” e “Cristologia”. Muito contribuiu para uma produção teológica movida por padrões científicos, consciente de que as questões religiosas ganham em ser refletidas com profundidade e exigência. Ele gostava de recordar que “grandes cataclismos na história da Igreja se ficaram a dever, muitas vezes, ao desfasamento entre o modo rotineiro de viver e pensar a fé e as novas exigências civilizacionais e culturais do tempo”. Henrique Noronha Galvão foi membro da Comissão Teológica Internacional; integrou ativamente o grupo dos antigos doutorandos de Ratzinger que se reúne todos os anos para um colóquio científico a que Ratzinger sempre assistiu, mesmo quando era Papa; foi fundador e diretor da edição portuguesa da revista “Communio”. Deixou-nos este mês de outubro.

 

Revista Expresso | 2349, 21 de outubro de 2017]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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