O que um computador não pode fazer
Teremos de refletir melhor sobre o impacto da tecnologia na forma da nossa humanidade, para lá do ingénuo deslumbramento promovido pelas grandes máquinas publicitárias. Também aqui estamos num período de transição. Uma primeira etapa que tem funcionado até ao presente é a da coexistência, onde as máquinas substituem alguma atividade humana, mas num regime de subordinação. A finalidade da tecnologia é ainda, nesta fase, encarada como instrumental. Mas estamos a entrar noutra era em que os dispositivos tecnológicos se tornarão tendencialmente “objetos de companhia”, da mesma forma que denominamos os animais domésticos “animais de companhia”, implicando isso um determinado grau afetivo de relação e uma prática habitual de convivência e de cuidado. Hoje, por exemplo, estamos afeiçoados aos animais domésticos. Mas os cães e os gatos, por exemplo, são também companheiros exigentes: têm as expressões e necessidades orgânicas dos seres vivos, estão como nós sujeitos à imprevisibilidade de uma existência contingente, não se podem desligar, abandonar ou esquecer. Hoje começa a olhar-se para os robôs como companheiros mais fáceis, que oferecem todas as vantagens dos “animais de companhia” e outras ainda, sem o custo vital que lhes está associado. A propaganda deste novo surto tecnológico defende que as máquinas são um antídoto contra o isolamento e a solidão com uma eficácia garantida.
Por outro lado, em algumas escolas de medicina propõe-se sempre mais frequentemente substituir o diagnóstico feito por especialistas por aqueles realizados por máquinas, considerando que a margem de erro destas se tem revelado menor. Até aqui acreditamos que a relação entre médico e doente era parte do processo de cura. O médico que fala connosco é mortal como nós e, nesse sentido, gera-se uma empatia completamente singular. Mas se as máquinas são melhores? A opinião dominante é que muitas das atuais resistências que ainda subsistem serão vencidas e cada vez mais estaremos dispostos a substituir relações tradicionais por novos interfaces tecnológicos. Inclusive a dimensão afetiva deixará de constituir um obstáculo, pois se reforçarão os vínculos emocionais, os apegos, os sentimentos. Se hoje um adolescente pode dizer “eu amo o meu computador, porque através dele acedo aos meus amigos”, em breve dirá “eu amo o meu computador, porque ele é o meu melhor amigo”.
Àqueles que asseguram que os computadores poderão ter uma centralidade reforçada nos processos tipicamente humanos é, contudo, necessário recordar aquilo que um computador não pode fazer. Uma máquina poderá ser colocada no lugar de um médico? Um juiz chegará a ser substituído por um computador? Para compreender a mistura de fatores e razões de um ser humano requer-se um discernimento humano. Se fosse puramente automático não seria humano. E um computador pode ser artista? Imitará os grandes mestres, sem dúvida, mas não conseguirá antecipar aquilo que na história da música foi Beethoven ou na história da arte representou Picasso. Um computador alguma vez substituirá o encontro com outro ser humano? Que tem ele a ensinar sobre escolhas livres, gratidão, prudência ou perdão? Como podemos fazer uma pergunta e ser escutados também na dor submersa que não chega sequer às palavras? Podemos confiar que o computador será sensível à força da nossa fragilidade? Pode programar-se através deles as virtudes ou um itinerário de procura espiritual? Que resposta nos darão para o mal e a morte? Se a nossa escatologia for apenas um futuro melhorado pelos computadores não ficará a faltar nada?
[©Revista Expresso | 2353, 1 de dezembri de 2017]