O teu rosto esta manhã
Se tivéssemos de especificar uma testemunha da procura das bem-aventuranças na contemporaneidade, provavelmente não nos viria à ideia o escritor norte-americano Jack Kerouac e a chamada “beat generation”.
Mas há, neste nosso tempo de desencontros, mais inquietação espiritual, mais sede de absoluto do que pensamos. Parece, por exemplo, que foi o próprio Kerouac a cunhar a expressão “beat generation”.
Ora, o termo “beat”, que tem mais de uma aceção, é em todo o caso a primeira parte da palavra beatitude, e isto obriga-nos a imergir nas raízes católicas de Kerouac, que são evidentes em larga parte da sua obra.
Numa das suas páginas diaristas escreve: «Deus, tenho de ver esta manhã o teu rosto através dos vidros poeirentos da janela, entre o vapor e o furor; tenho de sentir a tua voz sobre o clangor das metrópoles. Estou exausto, Deus».
Num interessante volume de título roubado de uma canção de bruce Springsteen, “Hard to be a saint in the city: the spiritual vision of the Beats”, Robert Inchaust escreve que Jack Kerouac foi um dos mais humildes e devotos escritores americanos do século XX. E que desejou ser, mais do que um Philip Roth, uma versão jazz dos grandes místicos.
De muitos modos, temos de o reconhecer, o coração humano é uma jangada em chamas na direção do infinito.
[D. José Tolentino Medonça | In Avvenire]