O peixe, por Tolentino Mendonça
A verdade é que existem dimensões da nossa existência que não são explicáveis, que não pertencem à ordem da razão lógica. Através de um silogismo ou do conhecimento matemático não chegaremos a apreender o seu sentido. E o mesmo se passa com a técnica e com as outras formas da ciência. Mas também é errado pensar que pela razão afetiva se consegue desfazer o enigma. Podemo-nos talvez aproximar mais profundamente, mas não é por acaso que os grandes mitos do amor são, a maior parte das vezes, mitos da procura de amor, de desejo de amor, não são histórias de fusão, de coincidência perfeita ou de uma reciprocidade sem ângulos. Também à afetividade se pede que aprenda a abraçar o enigma, que deixe de temer aquela porção inalienável de silêncio e mistério que cada ser humano irradia até ao fim. Amar é também amar o que não compreendemos do outro. Lembro-me que José Augusto Mourão defendia, a propósito deste argumento, uma posição desafiadora. Ele dizia: “O que os biólogos marinhos, a indústria de peixe e os compradores de mitos partilham, é simplesmente isto: ninguém realmente sabe o que é um peixe.” É uma coisa em que pensamos pouco: o papel que na nossa vida cabe a este não saber. Se realmente não sabemos o que é um peixe, temos que retirar daí elações e perguntar: como me posso avizinhar de um peixe? Mourão responde: “Aprendamos a negociar.” Isto é, dispúnhamo-nos a aprender, ouvindo, tentando construir pacientemente um pacto, não vinculados a um saber teórico, mas sendo fiel à observação da própria realidade. Sobre o peixe, há aquele conto instigador de Herberto Helder, no livro “Os Passos em Volta”.
Amar é também amar o que não compreendemos do outro
“Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe. O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava... Ao meditar sobre as razões da mudança, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.” A lei da metamorfose não será certamente a única lei. Há um património de verdade e uma ontologia que persistem e se tornam a chave do que somos. Mas a história do peixe amarelo de Herberto Helder também relata dimensões significativas da vida. Identifico rapidamente duas. Primeiro, a importância daquilo que chamaria uma “espiritualidade do provisório”. E cito Roger Schutz, fundador da comunidade ecuménica de Taizé, que explicava o provisório como o aceitar ir de começo em começo; aceitar a peregrinação, a desinstalação permanente; aceitar que podemos habitar a passagem; aceitar comprometer-se apaixonadamente com a vida não apenas quando temos todas as coisas garantidas, mas porque aceitamos caminhar na confiança. A outra coisa é a necessidade de realizar um percurso de reconhecimento. Reconhecer é antes de tudo identificar: tenho que saber quem é o outro e quem sou eu próprio; tenho de ouvir melhor, aprender a ver em profundidade. Mas o reconhecimento é também a gratidão que me faz compreender que a vida é pura economia do dom.