Passe-vite, por Tolentino Mendonça
A patente deste equipamento de cozinha tem registo datado de 1928, em nome do inventor belga Victor Simon, mas a verdade é que o famoso ralador de inox, mais ou menos se universalizou, e por duas razões: passa depressa os alimentos e deixa-os com uma consistência que facilita a deglutição. Dá que pensar a expressão “passe-vite”. De facto, não são apenas os legumes que giram em velocidade entre as hélices do ralador. Da nossa própria vida podemos dizer que um dos seus traços é esse: no seu trânsito frágil, fascinante e inelutável, ela passa depressa. Tenho um bando de amigos que, pesando tudo isso, se autodenominou ‘passe-vite’. Cruzaram-se nos tempos de universidade, cimentaram a amizade nessa outra escola de vida que é o voluntariado social, maturaram as próprias escolhas na partilha da palavra e do silêncio, da fé e da procura. Há anos que se encontram regularmente, que se encontram a bem dizer por nada, apenas no desejo de regar as raízes do seu futuro comum, pois a conspiração que os anima é a de, na velhice, poderem viver todos juntos (na mesma casa, no mesmo lar, na mesma jangada, no mesmo bosque). Um dia convidaram-me para um desses encontros, e sinto também que por nenhuma razão em especial: queriam simplesmente estar, estar com a pessoa, mais do que ouvir falar sobre um tema. Foi aí que me explicaram a rir o seu projeto, esclarecendo que, entre eles se chamavam assim, “porque a vida passe vite e porque quando arrancarem finalmente com a comunidade de idosos terão já de comer a paparoca mais passada”. Primeiro ri com eles até às lágrimas, com a sua louca e sapientíssima ligeireza, mas depois dei por mim só com lágrimas descendo-me pelo rosto, pois aquele bando de jovens adultos, que aparentemente não queria nada, me estava afinal a mostrar oceânicas profundezas da vida.
Cada um de nós envelhece à sua maneira, com a sua própria dicção e os seus limites, os seus contextos e os seus sonhos, mas temos muito que aprender uns com os outros
Recordei-me deles estes dias ao ler um livro de Marta C. Nussbaum e Saul Levmore, amigos de longa data e colegas na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, intitulado “Envelhecer Com Sabedoria. Diálogos Sobre a Vida, o Amor e o Remorso”. E a lição que se retira dessas conversas entre a filósofa e o jurista é que há um défice de pensamento sobre a velhice que se torna urgente inverter. Cada um de nós envelhece à sua maneira, com a sua própria dicção e os seus limites, os seus contextos e os seus sonhos, mas temos muito que aprender uns com os outros. E a verdade é que falamos pouco sobre isso ou, pelo menos, não de forma suficiente e aberta. Trata-se, no fundo, de preparar juntos uma etapa da vida como, a seu tempo, foi acompanhada a infância, a iniciática adolescência ou cada um dos ciclos da vida adulta. E da mesma maneira que, nessas outras etapas, também o discurso das competências externas e dos recursos internos se deve colocar. A velhice apresenta interrogações e dilemas específicos, mas é bem mais do que uma imagem estereotipada. Associadas às dores há o saborear de alegrias talvez ainda não experimentadas. A par das preocupações, é possível provar, não raro, uma serena liberdade na forma de estar com os outros, uma compreensão mais ampla e maturada do real, uma criatividade mais afetuosa e menos temerosa. No meio de tanta transformação que a velhice comporta, ela permite enfrentar não só a perda, mas também o amor; não só a solidão, mas também formas novas de presença e companhia; não só a avolumar das necessidades, mas também o gratuito perfume do dom. A velhice pode ser uma oportunidade para viver de forma mais reconciliada, pacificadora, espiritual e atenta, na fidelidade a essa arte que nos está confiada: a de dizer e redizer infinitamente o amor.
[©SEMANÁRIO#2451 - 18/10/19]