A palavra do ano, por Tolentino Mendonça
Se tivesse de escolher a palavra do ano arriscaria a palavra “conversão”. Talvez alguns pensem que esse termo, sendo habitualmente utilizado no campo religioso, não possua a capacidade de tocar a todos. Com humildade, penso o contrário. Esta é uma daquelas palavras sem dono. É demasiado séria e transversal, é demasiado necessária à nossa humanidade para ficar paralisada por uma etiqueta. Ela descreve uma mudança, mas não de superfície. Motiva a uma viragem, mas não apenas de modas ou de ventos. “Conversão” é uma mudança sim, mas da forma total de ver, de nos vermos a nós próprios, de percecionarmos o mundo, de interpretarmos a justa relação com o real, de identificarmos o que pode ser portador de sentido e aquilo que, em vez disso, o cancela. É uma viragem, certamente. Implica, porém, aquela adesão de coração que nos coloca por inteiro a viver — na verdade, a experimentar e a ousar viver — por uma gramática diferente. “Conversão” é uma palavra adulta, porque supõe um nível de consciência sem escapismos. Não há “conversão” sem essa ousadia de olhar para o estado das coisas e reorientar o caminho, aceitando que a única verdadeira forma de transformar é transformar-se. Ora, o presente do mundo, a muitas vozes, está a dizer-nos que o futuro passa pela palavra “conversão”. Dois exemplos marcam este ano de 2019.
Um é o programa da nova comissão europeia, que a presidente Ursula von der Leyen enfatizou como uma “conversão” inadiável: fazer com que a Europa se torne o primeiro continente com impacto climático zero, através de medidas inequívocas como a redução a metade das emissões de CO2 até 2030 e a introdução da taxa de carbono. Uma expressão desta “conversão” será ainda o pacto europeu sobre o clima, que deverá envolver a todos: desde as grandes indústrias aos cidadãos e aos seus estilos de vida.
Esta é uma daquelas palavras sem dono. É demasiado séria e transversal, é demasiado necessária à nossa humanidade para ficar paralisada por uma etiqueta
Um outro exemplo — de nitidez impressionante — é o documento final do sínodo dos bispos sobre a Amazónia. Ali se defende que o nosso tempo é chamado a uma “conversão integral”, afirmando-se que “a escuta do clamor da terra e o grito dos pobres” desafia o mundo a rever as suas ambições, aderindo a modelos de vida bem mais sóbrios, que tenham em conta o cuidado da casa comum. Tal implica uma “conversão” efetiva das formas da cultura. Num mundo global precisamos promover um diálogo intercultural, não permitindo que a lógica do medo ou do lucro diminuam as práticas múltiplas de hospitalidade. A lógica da sobreposição deve dar lugar à experiência do encontro. A tentação da exclusão tem de ser vencida pelo exercício solidário da inclusão. A terra mostra-nos que a vida se tece perpetuamente, seja em que âmbito for, em inter-relações e interdependências. Só assim alcança harmonia. O nosso pensamento ocidental tende a dividir para interpretar a realidade, enquanto que os povos que estão mais próximos da natureza nos mostram outro modelo baseado não na fragmentação, mas no respeito e na reciprocidade.
De “conversão” fala o belo poema da brasileira Adélia Prado, que se recita como um assobio no bosque: “Tudo que existe louvará./ Quem tocar vai louvar,/ quem cantar vai louvar,/ o que pegar a ponta de sua saia e fizer uma pirueta, vai louvar./ Os meninos, os cachorros,/ os gatos desesquivados, os ressuscitados,/ o que sob o céu mover e andar/ vai seguir e louvar.// O abano de um rabo,/um miado, u’a mão levantada, louvarão./ Esperai a deflagração da alegria./ A nossa alma deseja,/ o nosso corpo anseia o movimento pleno:/ cantar e dançar TE-DEUM.”
[©SEMANÁRIO#2459 - 14/12/19]