A amizade é uma pátria, por Tolentino Mendonça
Foi isso, ou melhor, foi mais do que isso que o escritor Joseph Roth escreveu numa carta ao seu amigo Stefan Zweig, datada do verão de 1935. Ele escreveu: “Por fim, a amizade é a verdadeira pátria.” Na verdade, dois anos antes, nos meses fatídicos em que Hitler se tornara chanceler do Reich, Roth começara a perder as suas pátrias, e percebemos melhor aquele “por fim” a encabeçar a sua afirmação. Com o estabelecimento do nazismo, Joseph Roth perdia para sempre a Alemanha, mas estava consciente de que esse seria apenas o início do irreversível processo que conduziria a tantas outras perdas: “Avizinhamo-nos a grandes catástrofes. Para lá daquelas privadas — a nossa existência literária e material está liquidada — tudo conduz a uma nova guerra... Conseguiu-se que a barbárie governe. Não se iluda. O inferno comanda.” Porém, em 1935, ainda restava a Roth uma pátria imaginária: o regresso da Casa de Habsburgo, a nostalgia por uma Áustria imperial que servisse de tampão ao avanço daquela loucura extrema. Mas, em relação a essa pátria idealizada, não havia propriamente certezas. Ele próprio balançava entre a militância e o luto, como confessa no prefácio a um dos seus grandes romances, “A Marcha de Radetzky”: “Uma cruel vontade da história estilhaçou a minha velha pátria, a monarquia austro-húngara. Amei-a, a esta pátria, que me permitiu ser contemporaneamente um patriota e um cidadão do mundo, um austríaco e um alemão... Amei as suas virtudes e qualidades e agora que está morta e perdida, amo também os seus erros e fraquezas. E tinha muitos. Expiou-os a todos com a sua morte.” Restava, portanto, a Joseph Roth o que ele, naquele verão, refugiado no Hotel Foyot, em Paris, declarou a Stefan Zweig: “Por fim, a amizade é a verdadeira pátria.”
A amizade é uma das parábolas humanas mais poderosas e inesquecíveis a que podemos aceder
A amizade epistolar daqueles dois foi uma pátria sincera, afetuosa e triste, numa Europa em crepúsculo. As quase 270 cartas que trocaram numa única década, entre 1927 e 1938, mostram-no bem. E explicam igualmente porque é a amizade uma das parábolas humanas mais poderosas e inesquecíveis a que podemos aceder. Zweig e Roth testemunham “o penetrante e emocionante aroma hebraico que tinha a Europa”, mas cada um a seu modo. Zweig desejou ser um Erasmo de Roterdão no século XX, encarnando a inviolabilidade da liberdade individual, insistindo num humanismo pacifista contra toda a evidência. Em setembro de 1937, escreve ao seu amigo: “Não, Roth, não nos devemos endurecer com a dureza dos tempos, temos de ser positivos, ser mais fortes.” E quando esta possibilidade lhe foi tirada, compreendeu que a única via para si era a fuga. Roth era, por seu lado, visceral, autodestrutivo, lúcido, fulgurantíssimo e profético. Essa pequena obra-prima que é “A Lenda do Santo Bebedor” não é apenas o seu testamento, mas também o seu autorretrato irónico e pungente, entre imigrantes desprotegidos e peregrinos sem destino, num amargo mundo em despedida. As cartas trocadas nos últimos anos acentuam os contrastes entre ambos. Zweig escreve: “Caro Roth, porquê, porque está sempre assim ofendido?” Roth responde: “Caro amigo, talvez falemos duas línguas diferentes...” Zweig acrescenta: “Você tem a sensação de que eu não o compreenda...” Roth atira: “Porque tem você tanto medo das palavras indignadas?” Até nestes duelos secos, nestas marcações intransigentemente solitárias, mas feitas ainda para o outro ver, as suas são cartas de amizade autêntica. Zweig afiança: “Não conseguirá jamais me fazer desistir de amar Joseph Roth.” E Roth assegura: “Se tivesse um irmão, não o esperaria com maior ânsia do que aquela com que espero por si.”
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