Capacidade negativa, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 10 agosto 2020  •  Tempo de Leitura: 4

É a uma carta do poeta John Keats que se deve a origem deste curioso conceito. A 22 de dezembro de 1817, ele escrevia aos irmãos, George e Thomas, anunciando haver compreendido qual era o segredo que garantia a realização plena de um homem e o tornava, como ele dizia, a “man of achievement”. Este segredo era a capacidade de caminhar na incerteza; de se deixar fluir através dos enigmas da vida, mesmo na dúvida; de se abandonar serenamente ao que lhe é dado viver, sem escapismos nem ressentimentos; e, sobretudo, a capacidade de não cair no erro de avaliar unicamente o caudal da existência pela viciada máquina do cálculo ou da razão. Os trabalhos da vida em nós estão para lá disso, insistia Keats. E um dos mestres para o qual apontava era Shakespeare, pois num grande poeta o sentido da beleza declara supérflua qualquer outra consideração. A esta resiliência para conduzir a embarcação que nos pertence através do oceano vasto e desconhecido, na ausência de mapas e de formas exaustivas de controle, John Keats designava como “capacidade negativa” (negative capability). “Negativa” porque contraposta à necessidade “positiva”, que reconhecemos em nós, de prever tudo, de perscrutar cada pequeno acontecimento pela lente da razão ou de lhes assegurar, de imediato, um desfecho, como se a vida fosse orientada por um guião.

 

A esta resiliência para conduzir a embarcação que nos pertence através do oceano vasto e desconhecido, na ausência de mapas e de formas exaustivas de controle, John Keats designava como “capacidade negativa”

 

De facto, ao romantismo devemos a abertura da nossa sensibilidade a critérios não puramente empíricos, procurando uma síntese mais polifónica e integradora do humano, onde, por exemplo, a imaginação e o sentimento, a arte ou a religião não fossem enxotados para um estatuto epistemológico de menoridade, como se não tivessem nada a dizer sobre a existência. Novalis escreveu que “quanto mais poético mais verdadeiro”, uma sentença que conserva ainda muito para aprofundar. Sim, os livros de contabilidade dizem alguma coisa sobre o real, mas não dizem tudo e, porventura, não dizem o mais importante.

 

Wilfred Bion irá recuperar este conceito de Keats e colocá-lo dentro do seu modelo psicanalítico, pretendendo descrever a capacidade (trata-se, na verdade, de um treino) para permanecer na confusão e na dúvida enquanto se escuta, sem precipitar-se na tentação de intervir cedo demais. Isso vale para a escuta analítica, mas também para as outras formas e contextos de escuta: o ouvinte tem certamente de aprender a compreender o que o outro lhe comunica; porém, também lhe será útil aprender a resistir à compreensão prematura, aceitando que muitas vezes se tem de relacionar com o que surge como incompreensível, ambíguo e contraditório, sabendo acolher e esperar. Para compreender é necessário esse abraço ao incompreensível de forma desarmada, que permitirá depois ao conhecimento que se constrói superar a dimensão plana, que tão frequentemente o aprisiona.

 

Penso, por exemplo, nestes tempos que nos cabe viver e de como nos estamos a relacionar com a sua incerteza. A proposta de Keats inspira-nos a tomá-la humildemente como caminho, renunciando à ilusão de encontrar uma resposta rápida para as perguntas que nos estão a ser feitas e que se calhar não ouvimos ainda por inteiro. Há momentos, ensina o poeta, em que a modalidade mais próxima da sabedoria é essa difícil passividade, sem a qual não experimentaremos a recetividade mais verdadeira.

 

Mas, por fim, “Negative Capability” é também o título que Marianne Faithfull deu ao seu último e comovente disco, um disco feito depois dos 70 anos (depois de um tumor e de inúmeros golpes), tentando agora conjugar o desejo de viver em plenitude com a maturação das próprias incertezas. Foi este disco que me mandou ler Keats.

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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