Que fazes tu no céu, ó lua?, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 26 agosto 2020  •  Tempo de Leitura: 5

Um dos filósofos mais originais e discretos do século XX, o russo Pavel Florenskij, escreveu: “A nossa vida escapa-nos como um sonho, e é possível não chegar a tempo de fazer coisa alguma neste breve instante que é a vida. Por isso, é necessário aprender a arte de viver, a mais difícil e a mais importante das artes: a capacidade de conferir a cada hora um conteúdo substancial, conscientes de que aquela hora não tornará jamais.” Pode, de facto, acontecer-nos “não chegar a tempo” até porque, precisamente o tempo, é uma alta febre que nos toma e que, não raro, nos atira borda fora da nossa própria embarcação. Desde que ganhámos consciência de que estamos dentro do tempo, de que somos seres amassados na argila do tempo, deixámos de ter tempo. A nossa vida, quase por completo, está destinada ao fazer e ao produzir, a essa luta certamente áspera, monótona ou dilacerante, mas também apaixonada, envolvente e, à sua maneira, vital. Na verdade, não há, à partida, nenhum problema com a vida ativa da qual dependemos, e não só para garantir a basilar luta pela sobrevivência. O coágulo forma-se quando a atividade se torna o fim e nós os instrumentos; quando, manhã após manhã, o espelho testemunha como nos estamos a transformar em elementos puramente instrumentais de uma vida que já não quer saber de nós. Muitas vezes, a esse lampejo de consciência, reagimos pressionando ainda com mais força o pé contra o acelerador, deixando-nos ir, aceitando que não nos resta outra forma de aceitar a temporalidade. E tentamo-nos consolar dizendo: “não tenho vida, mas tenho coisas”, “não tenho tempo para nada, mas adquiro poder de compra”.

 

Às nossas sociedades falta uma reflexão séria sobre a completude da experiência humana e sobre as reivindicações — a maior parte delas sufocada — por um estilo de vida mais equilibrado

 

Às nossas sociedades falta uma reflexão séria sobre a completude da experiência humana e sobre as reivindicações — a maior parte delas sufocada — por um estilo de vida mais equilibrado. O dever ou o direito de fazer não tem de se construir sacrificando a toda a linha o dever ou o direito de ser. A estimulação para o ativismo não tem de ser tão brutal que insista em queimar — com a rapidez com que arde um fósforo — todos os recursos, exteriores e interiores, que alguém possui para viver. A pressa não pode ignorar por completo a lentidão. A vida ativa não tem necessariamente de suprimir a necessidade que cada um de nós sente de contemplação.

 

Vêm-me ao pensamento os versos do ‘Canto Noturno de um Pastor Errante da Ásia’, do poeta Giacomo Leopardi: “Que fazes tu no céu, ó lua? Diz-me/ que fazes, silenciosa lua? [...]/ Diz-me ó lua, afinal/ que vale ao pastor a sua vida,/ ou para que te serve a ti a tua? Diz-me para que direção/ caminha este meu breve vagar/ e para onde se dirige o teu curso imortal?” Na composição, o pastor errante contempla a lua. Com que necessidade? Em busca de quê? Em busca de uma profundidade que porventura nunca conseguiremos atingir completamente, mas na qual precisamos de nos sentir imersos. Há um horizonte mais amplo, para lá da resolução individual da minha existência: ficarei incompleto, alguma porção essencial de mim ficará por se desenvolver, se nunca tiver chegado verdadeiramente a confrontar o “meu breve vagar” com o “curso imortal”. Na língua latina, a palavra contemplação deriva da junção de dois termos: cum e templum, que indicava na antiguidade o espaço aberto nas cúpulas para que se interpretassem os sinais do futuro. Contemplar é não apenas introduzir uma benéfica lentidão no nossa olhar. É também colher o tempo da vida como um tecido relacional, uma intersecção dialógica que dilata ao infinito o sentido da nossa existência.

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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