Todos irmãos, por Tolentino Mendonça
Este sábado, o Papa está em Assis para uma operação carregada de simbolismo: assinar junto ao túmulo de São Francisco a sua encíclica “Omnes Fratres” (“Todos irmãos”). É uma espécie de dívida de gratidão que se salda desta forma, pois como explica o papa “este santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a encíclica ‘Laudato Si’, novamente me motiva a dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social”. O que podemos, desde já, desejar é que este texto urgente e inovador encontre leitorados amplos, dentro e fora da Igreja, capazes de refletir em profundidade o significado dos seus desafios. Isto porque a reflexão acerca da fraternidade tem sido sistematicamente adiada. Da tríade liberdade, igualdade e fraternidade, as nossas sociedades integraram as duas primeiras, mas deixaram de fora a fraternidade como se fosse um assunto estritamente privado, sobre o qual não é possível construir um consenso social. Mas, como diz o Papa Francisco, sem a fraternidade, a visão da liberdade e da igualdade correm o risco de se tornarem inconclusivas e abstratas. O reconhecimento da fraternidade é, por isso, uma das tarefas atuais mais prementes.
Esta proposta sobre a fraternidade universal, Bergoglio situa-a na continuidade do documento sobre a fraternidade humana para a paz mundial e a convivência comum, assinado conjuntamente com o grande imã Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019. A encíclica perspetiva assim o tema da fraternidade a partir da tradição católica, mas pretende claramente ultrapassar fronteiras, abrindo-se em diálogo com outras tradições. E além de Ahmad Al-Tayyeb são nomeadas, entre outras, as inspirações de Martin Luther King, Desmond Tutu e Mahatma Gandhi. Do mesmo modo, no que respeita aos destinatários desta encíclica, que corporiza “um novo sonho de fraternidade e de amizade social que não se fique apenas pelas palavras”, o Papa deseja que ela se torne um ponto de diálogo aberto com todas as pessoas de boa vontade.
Ou nos constituímos como um “nós” que habita a Casa comum que é a terra ou veremos apenas crescer a guerra de interesses e egoísmos que nos põe a “todos contra todos”
O presente texto coloca-se claramente na linhagem das chamadas “encíclicas sociais”, que abordam diretamente as problemáticas que afligem as sociedades, iluminando-as com um património doutrinal que, desde a célebre encíclica de Leão XIII, “Rerum Novarum” (1891), se tem vindo sempre a consolidar. A maior parte dos papas do século XX apresentou encíclicas sociais e alguns fizeram-no mais de uma vez, como foi o caso de João XXIII (2), Paulo VI (2) ou de João Paulo II (3). Também o Papa Francisco bisa com este novo e incisivo texto que revisita, em chave de atualidade, temas recorrentes da doutrina social da Igreja: os direitos da pessoa humana, a cidadania, o bem comum, o trabalho, os modelos de desenvolvimento, a destinação universal dos bens, a propriedade, a construção da justiça e da paz, as migrações, a regulação económica, a reabilitação da política, a condenação do racismo, a ecologia, o avanço tecnológico, os reptos que se colocam à informação na era digital, etc.
Francisco sabe bem os riscos que corre propondo uma encíclica sobre uma categoria que (ainda) não tem estatuto político. Em diversos momentos ele alerta para que o seu discurso não seja treslido como uma utopia bem intencionada, porém impraticável. Ora, aqui joga-se com coragem profética exatamente o contrário: a certeza de que ou nos constituímos como um “nós” que habita a casa comum que é a terra ou veremos apenas crescer a guerra de interesses e egoísmos que nos põe a “todos contra todos”. Quem tem ouvidos para ouvir, oiça este apelo “a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência”.
[SEMANÁRIO#2501 - 3/10/20]