Silêncio, por Tolentino Mendonça
Excertos das intervenções do Card. José Tolentino Mendonça durante o diálogo com o compositor e cantor Pedro Abrunhosa, no âmbito da iniciativa “Encontros Fora da Caixa”, que decorreu a 24 de julho, em Mangualde, cidade do interior de Portugal. “No princípio… Era o silêncio” foi o tema da sessão.
A interioridade territorial lembra-nos que cada um de nós, cada ser humano, transporta também uma interioridade; e, muitas vezes, o problema da interioridade do território, é igual à interioridade humana: fica esquecido, abandonado, relegado para um segundo plano, tem projetos de desenvolvimento verdadeiro, sustentável, remetido para uma espécie de lugar secundário, enquanto a exterioridade acaba por ter todo o espaço.»
Ora, quando um ser humano deixa a sua interioridade por integrar e desenvolver, o que é que acontece? A vida perde a sua coesão, desagregamo-nos. E por isso, falar do silêncio, não é apenas uma conversa um pouco esotérica para falar com um cardeal, mas é uma conversa política sobre os seres humanos, e sobre a forma como as nossas sociedades são chamadas a organizar-se. Porque se não damos espaço para o crescimento interior, para que cada um possa escutar até ao fim a pergunta que traz, o enigma que é vivermos sobre a Terra, se cada um de nós não escutar o lugar onde vive, o lugar onde fala, se não se der condições para praticar uma hospitalidade genuína em relação ao real, há um empobrecimento muito grande da vida.
Por isso, o silêncio é indispensável. É uma condição da nossa existência. Sem o silêncio, as realidades sobrepõem-se – palavra acima de palavra –, e não damos espaço a uma audição efetiva da realidade, seja a externa, seja a nossa interior.
O silêncio costura-nos. É uma espécie de linha que atravessa todas as coisas da nossa vida, mesmo quando não nos apercebemos dele.
Eu comparo muito o silêncio àquilo que é o espaço entre as palavras num texto. Se as palavras não tivessem um espaço, não se leriam. Sem o silêncio, a nossa vida não se lê. É apenas um atropelar de vivências, de situações, mas nunca damos espaço a uma digestão, que é necessária para poder haver encontro, para poder haver revelação, para poder haver conhecimento. (…)
O silêncio que experimentámos nesta pandemia foi uma espécie de silêncio purificador. (…) Temos de fazer deste momento um momento de proferição de uma palavra, e de uma palavra com uma qualidade humana que reflita o melhor do nosso silêncio
Uma experiência que todos já fizemos, ou fazemos, é a de que o silêncio é difícil. Ou temos medo desse encontro mais profundo connosco próprios, com as perguntas, as dores, o desejo, as coisas resolvidas ou não do nosso coração, e há medo desse silêncio
O que acontece dentro de cada um, acontece também na vida comum. Um certo atordoamento que hoje se vive na malha das nossas cidades, por exemplo, ou em tantas situações sociais, é exatamente porque, se nos calarmos, o que é que ouvimos? Há a tentação de fugir à voz mais profunda que nos chega da vida. Mas se não formos capazes de ouvir a vida como ela é, a verdade, a espantosa verdade das coisas, como dizia Fernando Pessoa, nunca celebraremos o verdadeiro encontro connosco próprios, e não podemos adiar continuamente a nossa vida. Por isso, o silêncio é um parceiro na construção das pessoas, na construção da vida social.
Hoje vemos uma grande sedução pelo silêncio. E não é por acaso que num encontro improvável como este o tema escolhido foi o silêncio. Não é apenas uma intuição do Pedro nem uma intuição minha; é alguma coisa que nos chega do desejo coletivo, que é vivermos não apenas pela rama, mas sermos capazes de colher em profundidade a vida.
Lembro-me de um poema de um poeta japonês, Matsuo Bashô, um “haikai”, em que ele diz: silêncio/ uma rã mergulha/ dentro de si. E este mergulho para o interior de nós é absolutamente indispensável. Sem isso, nós não somos. (…)
A dimensão do silêncio, e do silêncio de Deus, é uma categoria para dizer a dificuldade de acreditar e do caminho crente, é também um chamamento a perceber que, acima de tudo, temos de colocar a confiança
Para um poeta, a sua vocação primária é o silêncio, porque a poesia obriga a esse ato de escuta, de hospitalidade. Como para todo o artista – o Pedro sentirá isso, com certeza. A música é como a invenção do fogo, que aconteceu quando se bateram duas pedras; a música também nasce quando o silêncio se toca, se exaspera, se surpreende, e a música surge. Isto é fundamental para sabermos como é importante uma visão integral. (…)
O silêncio que experimentámos nesta pandemia foi uma espécie de silêncio purificador. (…)
Temos de fazer deste momento um momento de proferição de uma palavra, e de uma palavra com uma qualidade humana que reflita o melhor do nosso silêncio.
Por exemplo, o Pedro começou por falar dos abraços, dos afetos não expressos, das presenças que não pudemos manter; ora, todo esse capital de vida adiada, de silêncio, tem de nos levar a um compromisso maior.
Penso que este tempo de pandemia tem de ser um tempo de envolvimento de todos. A palavra «pandemia», «pan»-«demos», em grego quer dizer «todo o povo»; é uma coisa que diz respeito a toda a gente. Então, precisamos de nos sentir todos envolvidos, protagonistas deste momento da história, em que vamos precisar de muitas forças para manter a coesão, ou para reinventar uma coesão social, política, económica, afetiva, cultural, espiritual, que possa dar-nos o sentido de uma comunidade que não deixa ninguém para trás.
Isto é muito importante, e é uma palavra que vem deste silêncio que experimentamos com dor, com incómodo, mas que agora nos tem de motivar a repensar e projetar com confiança este difícil presente que estamos a viver. (…)
A sede é o nosso grande capital. É verdade que estamos num banco, e os euros, os dólares e as moedas são muito importantes, porque ajudam a viver; mas o grande capital humano, aquele que faz a diferença em nós, é a nossa sede, o nosso desejo, e o que estamos disponíveis para fazer com isso
O Evangelho de S. João diz que «no princípio era a palavra», que nós podemos traduzir como “no princípio era o desejo de comunicar”. Porque se acreditamos que Deus é amor, Ele é desejo de manifestar-se, de estabelecer um encontro.
Mas a revelação de Deus, e esse encontro, acontece também no silêncio. E, muitas vezes, num austero, difícil, noturno silêncio. Deus está ligado à questão do horizonte da vida, do significado da vida, das verdades fundamentais, e a essas verdades nós não acedemos de uma forma imediata, linear, fácil, mas acedemos a elas muitas vezes por um caminho que somente a confiança pode justificar.
A fé não absolve a dimensão trágica da vida, mas integra-a. Deus não deixa de ser nunca um mistério, seja para os não-crentes, seja também para os crentes. Por isso, a dimensão do silêncio, e do silêncio de Deus, é uma categoria para dizer a dificuldade de acreditar e do caminho crente, é também um chamamento a perceber que, acima de tudo, temos de colocar a confiança. E é na confiança que, pouco a pouco, de uma forma que muitas vezes, para nós, é uma surpresa, vamos percebendo o modo como Deus se revelou na história pessoal e na história do mundo.
Por isso, para a teologia, para a religião, o silêncio é muito importante, porque é através dele que ouvimos o falar escondido, misterioso, luminoso de Deus. (…)
Dante dizia que o amor move o sol e os outros astros. O amor é essa sede do outro, sede de infinito, sede de sentido, sede de felicidade, que mora, irremediavelmente, no coração insólito de um ser humano
Tudo é silêncio. E quando olhamos para a vida numa determinada dimensão, percebemos o silêncio mesmo numa pessoa que grita; porque há uma parte dela que grita, e há, talvez, a maior parte dela que permanece em silêncio. E se formos capazes de fixar o silêncio, vamos perceber que o silêncio está em toda a parte.
Eu, por exemplo, nesta casa, rodeado de livros, sei que há um silêncio em cada livro que é diferente de cada autor, sei que o mundo em meu redor é costurado desse silêncio, e sei que a palavra não interrompe o silêncio, que a palavra verdadeira é aquela capaz de prolongar e iluminar o nosso silêncio. (…)
O silêncio dá-nos uma grande capacidade de abraçar a vida, de a escutar até ao fim, de a viver apaixonadamente, que é a coisa mais importante. A ideia não é fazermos tudo para proteger a vida, isolando-a; não, a vida é para ser vivida, para ser dada, para encontrar um sentido, que esta mistura de sangue e de sonho que é a nossa vida possa ser lugar de uma combustão, de uma plenitude; a vida é para ser gasta.
Lembro-me de um poema do Carlos de Oliveira, «cantar/ é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras/ fique embora mais breve a nossa vida». A vida é breve, este é um caminho, mas temos de sentir que nesta brevidade, neste acender de fósforo, vivemos inteiramente, integralmente, aquilo que a vida é chamada a ser. O sentido está todo aí. (…)
A sede é o nosso grande capital. É verdade que estamos num banco, e os euros, os dólares e as moedas são muito importantes, porque ajudam a viver; mas o grande capital humano, aquele que faz a diferença em nós, é a nossa sede, o nosso desejo, e o que estamos disponíveis para fazer com isso.
Por isso, uma conversa como esta, em torno a valores como o silêncio, a comunidade, a sede, o desejo, é alguma coisa muito fundamental para todas as dimensões, porque é aquilo que move o mundo. Dante dizia que o amor move o sol e os outros astros. O amor é essa sede do outro, sede de infinito, sede de sentido, sede de felicidade, que mora, irremediavelmente, no coração insólito de um ser humano.