O interruptor, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 13 outubro 2020  •  Tempo de Leitura: 4

diferença entre a esperança e o desânimo é mínima: é como ligar um interruptor. Coisa tão estranha, a esperança! Por um processo surpreendente de vida interna, aquilo que antes parecia apenas um copo já meio vazio nós conseguimos vê-lo como um copo meio cheio. Quem o diz é a filósofa Martha C. Nussbaum, que não se conforma que, sendo a esperança uma experiência humana decisiva, seja tão pouco conversada e refletida.

 

Segundo Nussbaum, há três coisas essenciais que todos temos a aprender (ou a reaprender) sobre a esperança. A primeira é que ela não é um discurso sobre probabilidades. Nem podemos fazer depender a legitimidade da esperança do facto de ter um desfecho provável. Pelo contrário, quando aumenta a probabilidade de um resultado positivo, falar de esperança torna-se supérfluo. Melhor seria, nesse caso, falar de expectativas, e de boas expectativas. É quando nada parece garantido que a esperança joga um papel fundamental, mobilizando-nos para não cruzarmos os braços nem nos darmos por derrotados. Renunciar à esperança é aceitar coincidir com a realidade sem mais, enquanto agarrar-se a ela é introduzir uma tensão inconformada entre nós e a morfologia do presente. Essa tensão insufla no tempo uma coragem que desconhecíamos; motiva-nos a uma ousadia e resiliência inéditas; coloca em marcha estratégias que, contra todas as expectativas, se revelam acertadas.

 

Renunciar à esperança é aceitar coincidir com a realidade sem mais, enquanto agarrar-se a ela é introduzir uma tensão inconformada entre nós e a morfologia do presente

 

A segunda coisa é que a esperança não é um discurso sobre desejos. Um dos erros frequentes é associar a esperança à satisfação de desejos imediatos, não raro tremendamente banais e infantis. Ora, só podemos falar de esperança quando estão em causa coisas grandes, superiores às nossas possibilidades; quando há uma confirmada incerteza sobre os resultados; e, por fim, quando face ao objeto da esperança percebemos uma impotência e uma falta de controlo da nossa parte. Além disso, a esperança não é uma experiência existencialmente neutra. Ter esperança não nos isenta de experimentar o medo, de sofrer violentamente com o abalo de terra de certos confrontos nossos com a fragilidade, de atravessar o ordálio das dúvidas. Numa das cenas mais extraordinárias dos evangelhos, Jesus consegue que também Pedro caminhe sobre as águas. É verdade que este depois se enche de medo e começa a afundar-se no lago. Mas o espantoso não é este facto. O espantoso é Jesus ter dito “Vem” e Pedro ter ido (Mateus, 14:22-36). Aliás, o medo faz parte de toda a construção verdadeira da esperança. Como escreveu Séneca, “se eu cessar de temer, cessarei também de esperar”.

 

A terceira coisa é que a esperança não é apenas um discurso dirigido à prática. Na verdade, mais do que uma simples atitude ou um estado emocional delimitado, a esperança é semelhante a uma síndrome. Inclui tudo: lógica e imaginação, preparativos práticos para a ação e fantasia criativa, racionalidade e fé. Existe uma “esperança prática” mas inseparável daquela que Martha C. Nussbaum chama uma “esperança ociosa”. A primeira é aquela que nos serve de combustível para a ação concreta e que nos cola a um objetivo determinado como um prego à parede. Essa modalidade, porém, não esgota a esperança. Acontece, por vezes, que censuramos a esperança por ela se parecer a uma miragem lenta e indulgente que nos deixa como que a pairar. Contudo, não nos convém ser demasiado rígidos nesta avaliação: mesmo quando a esperança se desenha como uma viagem solitária num fio de arame, ela acaba por ter um papel mais determinante do que supomos nesta nossa travessia.


[SEMANÁRIO#2500 - 26/9/20]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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